terça-feira, 10 de janeiro de 2012

SINTAXE

Universidade Federal de Santa Catarina
Licenciatura e Bacharelado em Letras-Libras na Modalidade a Distância
Autores da primeira edição:
Izete Lehmkuhl Coelho (UFSC)
Isabel de Oliveira e Silva Monguilhott (UFAM/PG-UFSC)
Marco Antonio Martins (PG-UFSC/CNPq)
Texto reeditado por:
Izete Lehmkuhl Coelho (UFSC)
Marco Antonio Martins (PG-UFSC/CNPq)
Lucilene Lisboa de Liz (PG-UFSC/CNPq)
Fabíola Sucupira Ferreira Sell (FASC/IESGF/UNIFEBE)
Sintaxe
     
Florianópolis
2009     2
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------------------- 3
Temática I – CONCEITOS BÁSICOS ----------------------------------------------------------- 5
Unidade 1: Pressupostos da Teoria Gerativa ..................................................................... 5
Unidade 2: A formação das sentenças ............................................................................... 14
Leituras complementares .................................................................................................... 16
Temática  II – OS SINTAGMAS ----------------------------------------------------------------- 17
Unidade 3: Categorias lexicais ........................................................................................... 18
Unidade 4: Categorias gramaticais (ou funcionais) ........................................................... 23
Leituras complementares ................................................................................................... 26
Temática  III – PREDICADOS E ARGUMENTOS ------------------------------------------- 27
Unidade 5: Exigência sintática dos argumentos ................................................................ 28
Unidade 6: Papéis temáticos dos argumentos ................................................................... 41
Unidade 7: Verbos monoargumentais ............................................................................... 47
Leituras complementares ................................................................................................... 57
Temática IV – Distribuição dos constituintes na sentença ------------------------------------- 58
Unidade 8: Ordem dos constituintes ................................................................................. 58
Leituras complementares ................................................................................................... 65
CONSIDERAÇÕES FINAIS ---------------------------------------------------------------------- 66
BIBLIOGRAFIA GERAL ------------------------------------------------------------------------- 68      3
INTRODUÇÃO
O objetivo central deste livro-texto é o estudo de  alguns aspectos relacionados à
sintaxe das línguas naturais, com especial atenção  a fenômenos sintáticos do português do
Brasil e com tópicos pontuais em Língua Brasileira  de Sinais (LIBRAS). Em tese,
considerando o conhecimento adquirido na escola, você já deve saber muita coisa relacionada
ao estudo da sintaxe. Para recordar, é importante dizer que a sintaxe é um módulo da
gramática que estuda as relações entre constituintes, conforme veremos com mais
detalhamento nas páginas que seguem. Você deve estar se lembrando (com certa angústia,
talvez) do estudo de sintaxe associado a um livro com regras prescritivas  “do bem falar e
escrever”. A sua lembrança diz respeito a uma possibilidade de estudar sintaxe, mas vamos
aqui trilhar um outro caminho.
 Antes de mais nada vale lembrar que podemos observar diversos fenômenos (físicos,
geográficos, sociais, lingüísticos etc.) no mundo em que vivemos e interpretá-los a partir de
uma determinada teoria. Construímos teorias para explicar esses fenômenos. A água, por
exemplo, se transforma em gelo quando atinge a temperatura de 0ºC, e esse é um fenômeno
natural e observável. Em todas as línguas humanas as orações exibem sujeito, e esse é
também um fato natural e observável. Assim como na física, em lingüística nos valemos de
uma teoria para explicar (ou interpretar) fenômenos observáveis.
 Neste livro-texto, a teoria utilizada para o estudo de fenômenos sintáticos é a teoria
gerativa; mais especificamente a teoria de Princípios e Parâmetros (cf. CHOMSKY, 1981;
1986), que tem o nome de Noam Chomsky como precursor. Há outras possibilidades que não
serão trabalhadas aqui – sugerimos que você leia o artigo Sintaxe de, Rosane Berlinck, Marina
Augusto e Ana Paula Scher (BERLINCK; AUGUSTO & SCHER, 2001) para uma visão geral
sobre essa questão.
 Nesse sentido, vamos assumir uma concepção de gramática bastante específica neste
livro-texto. Com base nos pressupostos da teoria de Princípios e Parâmetros, entendemos
gramática como uma teoria sobre o conhecimento lingüístico que um falante tem quando sabe
uma língua natural, como o português brasileiro ou LIBRAS, por exemplo. Apresentaremos
neste curso as vantagens do estudo da sintaxe a partir da teoria de Princípios e Parâmetros.
O livro-texto contempla quatro temáticas e está dividido em oito unidades: Na
Temática I, discutiremos alguns pressupostos basilares da teoria de Princípios e Parâmetros     4
(Unidade 1) e o processo de formação de sentenças (Unidade 2); na Temática II, colocamos
em destaque o estudo dos sintagmas e a relevância das categorias – ou núcleos – na formação
de objetos sintáticos, as lexicais (Unidade 3) e as funcionais (Unidade 4). As relações entre
predicados e argumentos estão por conta da Temática III; especificamente nesse tema,
discutimos a seleção sintática (Unidade 5) e a seleção semântica (Unidade 6) de argumentos e
aprofundamos a discussão sobre os verbos monoargumentais (Unidade 7). Na Temática IV,
fecharemos este livro-texto com uma discussão sobre a sintaxe da ordem dos constituintes nas
línguas naturais (Unidade 8).
Ao longo deste livro-texto sugerimos leituras relacionadas às temáticas aqui
discutidas.
Bom curso e boa leitura!     5
Temática I – CONCEITOS BÁSICOS
Nesta unidade, vamos traçar discussões a respeito dos pressupostos básicos da sintaxe.
Como já foi dito, tomamos as noções de língua, como objeto mental, e de competência
lingüística de Chomsky, que você já deve ter visto  na disciplina  Introdução aos Estudos
Lingüísticos, para tratar da formação das sentenças. Antes, porém, para início de conversa,
sugerimos que você vá ao DVD para retomar algumas noções que você provavelmente traz da
escola a respeito de sintaxe e de gramática.
Unidade 1. Pressupostos básicos da Teoria Gerativa
Sabemos que existe uma infinidade de possibilidades de combinação entre as palavras
de uma língua para formar sentenças. Sendo assim, as sentenças de uma língua são bastante
diversas entre si, em termos do número de palavras, da ordem em que elas se dispõem e do
sentido que expressam. No entanto, apesar dessa diversidade, existem Princípios universais
que regulam a formação de sentenças em todas as línguas naturais, existem também regras
que variam de uma língua para outra, os Parâmetros, e regras que variam dentro de uma
mesma língua.
Antes de avançarmos a discussão, seria interessante esclarecermos a perspectiva que
norteará esta disciplina. Como brevemente exposto na introdução, estamos adotando uma
perspectiva formalista para o estudo da sintaxe. Esta perspectiva se caracteriza pela
preocupação com o aspecto formal da língua sem ênfase à situação comunicativa em que as
formas lingüísticas aparecem. Tal perspectiva se baseia nos pressupostos da Gramática
Gerativa idealizada por Noam Chomsky no final da década de 50. Para a Teoria Gerativa, a
língua é vista como um objeto mental, vinculado a uma capacidade inata do ser humano para
compreender e produzir sentenças.
É bom lembrar que a perspectiva formalista não é a única abordagem que temos para
estudar as questões sintáticas. Há também a perspectiva funcionalista que, diferentemente da
formalista, enfatiza a situação comunicativa na qual as sentenças se inserem, entendendo que
a forma como as sentenças se organizam é fruto da necessidade comunicativa do ser humano.
O foco dessa perspectiva vai além dos limites da sentença, envolvendo-se com o contexto em
que a sentença se insere. Como já dissemos, essa discussão a respeito das diferentes      6
perspectivas para o estudo da sintaxe é objeto do estudo de Berlinck, Augusto e Scher (2001,
p.207-244) o qual sugerimos a leitura.
Voltemos, então, a alguns pressupostos básicos da perspectiva gerativista. Segundo
Chomsky, o ser humano é dotado de uma capacidade inata para a linguagem. Como você
sabe, o homem, diferentemente dos macacos, dos golfinhos ou das abelhas, é o único animal
dotado com a capacidade da linguagem/língua. Embora outros animais de uma forma ou de
outra se comuniquem
1
, o homem é a única espécie que combina um certo número de
elementos de acordo com determinados princípios para formar sentenças. Essa capacidade
que nasce conosco e tem a ver com o tipo específico de estrutura e organização da mente
humana é denominada Faculdade da Linguagem.
A  Faculdade da Linguagem é entendida pela gramática gerativa, conforme Raposo
(1992, p.15), como “o resultado da interação complexa entre vários sistemas ou módulos
autônomos de natureza diversa, caracterizados por regras e princípios específicos a cada um
deles”, e não como uma massa homogênea.
Assim como outras faculdades que temos no nosso organismo, a  Faculdade da
Linguagem é dedicada especificamente a alguma função. Nesse  caso, à língua. É essa
faculdade inata que possibilita a qualquer um de nós a aquisição de uma ou mais línguas
particulares (ou naturais).
A  Faculdade da Linguagem é, no seu estado inicial, igual para todos os seres
humanos. Todo o indivíduo que nasce, seja no Brasil ou nos Estados Unidos, por exemplo,
nasce com a mesma capacidade de adquirir língua(gem) e parte, portanto, do mesmo estado
inicial, denominado pela Teoria Gerativa de Gramática Universal (GU). A GU é, portanto, o
estágio inicial da Faculdade da Linguagem de um falante que está adquirindo uma língua.
A Faculdade da Linguagem vai se modificando de acordo com os estímulos externos,
de acordo com as experiências pelas quais cada um vai passando. Por isso, a criança que
nasce no Brasil, sendo exposta ao português (do Brasil), vai adquirir essa língua; sendo
exposta a LIBRAS, vai adquirir essa língua; sendo exposta ao tucano, vai adquirir essa língua.
E a criança que nasce nos Estados Unidos vai adquirir o inglês, a língua de sinais americana
ou ainda uma língua indígena a que for exposta. Assim, conforme o ambiente lingüístico a
                                               
1
As pesquisas científicas têm mostrado cada vez mais essa capacidade comunicativa dos animais. Ao final desta
unidade, você encontrará um exemplo retirado da Revista Discutindo Língua Portuguesa (Ano 1, n. 4, p.07,
2006), intitulado “Fala, Bicho!”. Veja também o site www.discutindolinguaportuguesa.com.br e a introdução de
Lyons (1987).      7
que formos expostos a nossa Faculdade da Linguagem, inicialmente igual para todos, vai se
modificando.
Vale ressaltar que, se não formos expostos a algum  estímulo externo, não
conseguiremos desenvolver esse conhecimento lingüístico, mesmo com todo o aparato inato
para tal capacidade. Esse estímulo externo a que nos referimos são as interações verbais entre
a criança e os outros membros da comunidade em que ela se encontra. Caso não haja qualquer
interação verbal entre a criança e outros indivíduos mais experientes, não haverá aquisição de
língua, pois o estímulo externo é imprescindível para o gatilho necessário à Faculdade da
Linguagem no processo de aquisição de uma língua particular. Existem alguns casos relatados
na literatura, como é o caso dos meninos-lobo que não tendo interação verbal com outros
seres humanos não conseguiram desenvolver sua linguagem
2
. Você talvez conheça também
relatos de crianças surdas que, sem o conhecimento  por parte da família, não interagem
verbalmente e desenvolvem, por conta disso, tardiamente a linguagem. No entanto, como
essas crianças possuem, como qualquer outra, a  Faculdade da Linguagem adquirem o
conhecimento lingüístico e se tornam capazes de produzir toda e qualquer sentença na língua
de sinais.  
Parece claro, então, que toda e qualquer criança, seja de qualquer nível
socioeconômico ou nacionalidade, partirá do mesmo estado inicial da  Faculdade da
Linguagem. Esse estado inicial, como vimos anteriormente, é  a GU, que se constitui de
Princípios e de Parâmetros. Os princípios são rígidos, invariáveis e universais, ou seja, válidos
para todas as línguas e qualquer gramática final (ou língua particular) terá que apresentá-los.
Os Parâmetros são variáveis, ou seja, podem variar de uma língua para outra.
Você está achando essa discussão um pouco abstrata? Vamos tentar entender melhor o
que são os  Princípios e os  Parâmetros  nas línguas naturais, através de exemplos. Como
dissemos, os Princípios são universais e, por isso, valem para toda e qualquer língua.
Observemos as sentenças a seguir:
(1) O Joãoi
 disse que elei
 está doente
(2) *Elei
 disse que o Joãoi
 está doente
                                               
2
 Ao final desta unidade, você deverá assistir ao filme Nell, que será objeto de discussão de uma das atividades
propostas nesta disciplina.      8
O índice
isubscrito indica que os elementos são correferenciais, ou seja, “João” e “ele”
se referem a uma mesma pessoa. Enquanto a sentença (1) é bem formada, a (2) não é, pois na
sentença (2) o pronome ele não pode ter a mesma referência do sintagma João. Na verdade,
um pronome como ele não pode estar co-indexado nesta configuração sintática. E isso parece
acontecer com essas sentenças traduzidas para toda  e qualquer língua natural. Logo,
afirmamos que há um Princípio que rege a combinação dos elementos na sentença, o qual
determina quando um nome pode ou não estar co-indexado com um pronome. Agora,
retomemos alguns exemplos de Raposo (1992, p. 56),  para discutirmos o conceito de
Parâmetros:
(3) Eles já chegaram da escola
(4) ∅ já chegaram da escola
(5) Ils sont déjà arrivés de l’école
(6) *∅ sont déjà arrivés de l’école
3
(7) They already arrived from school
(8) *∅ already arrived from school
Você arriscaria uma explicação para o fato de as sentenças (3) e (4) em português
brasileiro serem possíveis (gramaticais) e as sentenças (6) em francês e (8) em inglês não? O
que está em jogo já não pode mais ser um Princípio, mas um Parâmetro, pois é marcado
diferentemente para o português, para o francês e para o inglês, não é mesmo? Observe que
enquanto em português a oração é bem formada com realização do sujeito lexical, cf. (3), ou
sem, cf. (4), em francês e inglês a boa formação da oração depende da realização lexical do
sujeito, conforme os pares em (5)/(6) e (7)/(8).
Se você está lembrado, estamos falando do Parâmetro do sujeito nulo, que você já
discutiu na disciplina Introdução aos Estudos Lingüísticos. Com base na versão da teoria de
Princípios e Parâmetros que utilizamos, esse parâmetro pode ser marcado positiva ou
negativamente nas línguas naturais. No caso do português, a marcação parece ser positiva; por
                                               
3
 O asterisco no início da sentença (*) indica que é uma sentença mal formada ou agramatical numa determinada
língua natural.     9
isso, podemos ter sentenças sem o sujeito expresso ou foneticamente realizado, como em (4).
Por outro lado, o francês e o inglês marcam esse Parâmetro negativamente, já que não
permitem sentenças sem o sujeito expresso ou foneticamente realizado, como em (6) e (8). A
marcação do valor positivo ou negativo do parâmetro é feita pela criança a partir da
informação lingüística contida nos dados a que ela está exposta no período de aquisição da
linguagem.
No momento em que a criança passa a fixar ou estabelecer os parâmetros da gramática
de sua língua particular, com base nos dados lingüísticos que estão ao seu alcance, a
gramática da criança vai se constituindo, vai amadurecendo. As  gramáticas das línguas
particulares se constituem, então, de Princípios e de Parâmetros já fixados. Como dissemos
anteriormente, a Gramática Universal (GU) é o estado inicial da Faculdade da Linguagem. Já
a gramática do indivíduo adulto, vista como a evolução da Gramática Universal, constitui o
estado final.
 Retornemos, agora, ao conhecimento inato que nos capacita a distinguir se uma
sentença faz parte ou não da gramática da nossa língua materna; ou seja, o conhecimento que
nos possibilita dizer que as sentenças (9) e (10) do português são bem formadas e a (11) não
é.
(9) O menino caiu
(10) Caiu o menino
(11) *Menino o caiu
Como você pode constatar as sentenças em (9) e (10) são bem formadas em português.
Já a em (11) não parece uma sentença possível no português. Por quê? Embora haja diferentes
possibilidades de combinar as inúmeras palavras de uma língua, existem algumas regras que
impedem, por exemplo, a combinação em (11) em que o artigo “o” não está antecedendo o
substantivo “menino”. Essas regras são, na verdade, Princípios universais obedecidos por
todas as gramáticas das línguas naturais; as gramáticas impõem uma série de restrições para
tais combinações.
 O domínio que temos da nossa língua materna tem sido tratado na teoria Gerativa de
competência. A competência, nesse sentido, é o conhecimento mental e inato que permite a     10
aquisição da gramática de uma língua natural, assim como permite também o reconhecimento
das estruturas geradas por essa gramática internalizada.
 Para ilustrar ainda mais o que estamos dizendo, consideremos agora os seguintes
exemplos em (12) e (13):
(12) a. Maria saiu sem a bolsa
        b. * sem a Maria saiu a bolsa
(13) a. Os meninos foram embora
        b. * meninos embora foram os
 Observamos que as sentenças em (12b) e (13b) são agramaticais, pois não as
reconhecemos como pertencentes à gramática da língua portuguesa, diferentemente do que
acontece com as sentenças em (12a) e (13a), que são gramaticais. Dessa forma, podemos
afirmar que o conhecimento que nos capacita distinguir as sentenças (a) das sentenças (b) está
relacionado à competência dos falantes que sabem português.
 As diferentes possibilidades de uso das sentenças  em (12a) e (13a) relacionadas a
diferentes contextos sócio-culturais fazem parte do que se conhece na literatura gerativa como
performance ou desempenho. Vejamos um exemplo. Pelo que foi dito acima, todos nós temos
a mesma competência lingüística, ou seja, todos nós indistintamente somos capazes de avaliar
as sentenças da nossa língua: se são gramaticais ou não; se fazem parte da gramática da nossa
língua ou não. No entanto, observamos no dia-a-dia  que algumas pessoas convencem,
persuadem, emocionam melhor lingüisticamente do que outras. Você arriscaria uma hipótese
para o que as diferencia então?
 O que faz com que algumas pessoas sejam mais habilidosas do que outras no uso
concreto da língua, nesse sentido, faz parte do  desempenho. Assim como algumas nascem
mais habilidosas para nadar, outras nascem com habilidades manuais e outras são mais hábeis
com o uso da palavra: seja convencendo, como é o caso dos publicitários talentosos; seja
emocionando, como alguns poetas. Essa habilidade em parte também pode ser desenvolvida
ao longo dos anos, seja na escola ou com o estímulo da família, de amigos etc., pela leitura e
produção textual.
 Para ilustrar como essa habilidade no uso concreto da língua varia de pessoa para
pessoa, diferenciando assim competência de desempenho, na proposta da teoria gerativa,     11
tomemos emprestado um exemplo retirado de Negrão  et al. (2002, p.114). Primeiramente,
temos um bilhete escrito por alguém que perdeu o pai e, ao aproximar-se o dia de finados, faz
um pedido a um amigo:
Como amanhã é dia de finados, eu queria pedir pra você ir ao cemitério visitar o meu
pai. Eu gostaria que você pusesse umas flores no túmulo dele e que rezasse, não por
ele, mas por mim que, por ter guardado na lembrança somente os momentos de
amargura, me sinto tão morto quanto ele.
 A seguir, você encontrará o poema escrito por Manoel Bandeira sobre a mesma
temática:
Poema de Finados
Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.
Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reze uma oração.
Não pede pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.
O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali.
(Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio/Instituto Nacional do Livro, 1970,
p.128-129, apud Negrão et al., 2002, p. 114)
 Parece ficar claro, a partir desses exemplos, que  tanto o autor do bilhete quanto
Manuel Bandeira produzem sentenças bem formadas, ou seja, ambos são competentes     12
lingüisticamente. No entanto, existem diferenças no uso concreto da língua, não é mesmo?
Essas diferenças dizem respeito ao desempenho, à performance dos autores.
 Você pode estar pensando também nos casos de lapsos de memória, desvios de
atenção, distrações, hesitações, que são tão comuns no uso da língua no dia-a-dia. Para ilustrar
essa questão, tomemos emprestado mais um exemplo das autoras (Negrão et al., 2002, p.116):
Ontem eu conheci um cara, que é amigo do João, se lembra?, aquele João que
estudou comigo no primário, que era filho de um homem importante, agora não me
lembro dele, mas acho que ele era dono de um jornal ou de uma revista, ou talvez
fosse um político, não sei mais, só sei que ele tinha um bigode de todo tamanho... Mas
do que é mesmo que eu tava falando?
 Nesse caso, temos um fragmento de fala e, por isso, também estamos falando do “uso
concreto da língua” que diz respeito ao desempenho do falante.
Em síntese, vimos, nesta unidade, que a Faculdade da Linguagem é uma capacidade
humana inata que nos possibilita adquirir a gramática de uma língua natural. O estado inicial
da  Faculdade da Linguagem é o que chamamos Gramática Universal (GU). A GU é
constituída de princípios (válidos para todas as línguas) e parâmetros (variáveis de uma língua
para outra). De acordo com os estímulos externos a  que somos expostos, a FL, que
inicialmente é igual para todos os seres humanos, vai se modificando a partir da fixação dos
parâmetros da(s) língua(s) que estamos adquirindo.
 Vimos também que os seres humanos nascem dotados de uma capacidade para a
linguagem. Essa capacidade inata que temos para adquirir a gramática de uma língua a que
formos expostos quando crianças é conhecida como competência. Já o uso concreto desse
conhecimento, que varia de um indivíduo para outro, é o que define o  desempenho  ou
performance.     13
Fonte: Revista Discutindo Língua Portuguesa, Ano 1, n. 4, p.07, 2006.     14
Unidade 2. A formação das sentenças
 Como já vimos ao longo da Unidade 1, a sintaxe trata especificamente da estrutura das
sentenças. Essas são geradas a partir da combinação entre os elementos de uma língua. Vimos
também que os elementos que formam as sentenças não se combinam aleatoriamente. Os seus
constituintes obedecem a determinadas regras para se combinarem e respeitam uma hierarquia
dentro da sentença. São essas as noções que vamos retomar agora.
 Para entendermos o que são constituintes, recorremos a Perini (2001, p.44). Segundo o
autor,  constituintes são certos grupos de unidades que fazem parte de seqüências maiores,
mas que mostram um determinado grau de coesão entre eles. Observe a oração em (14), a
seguir.
(14) A casa de Lulu é azul e branca.
Na oração em (14) os falantes percebem que a casa de Lulu forma uma unidade, o que não se
verifica com Lulu é azul. Dizemos então que a casa de Lulu é um constituinte e que Lulu é
azul (na frase em (14) não é um constituinte.
 A idéia é que as orações são formadas de constituintes, muitas vezes uns dentro dos
outros. Assim a oração em (14) poderia ser analisada como contendo, entre outros, os
constituintes seguintes:
[a casa de Lulu é azul e branca]
[a casa de Lulu]
[casa de Lulu]
[azul e branca]
[é azul e branca]
 Note-se que certos constituintes estão dentro de outros: o constituinte [a casa de Lulu]
está dentro do constituinte [a casa de Lulu é azul e branca], e o constituinte [azul e branca]
está dentro do constituinte [é azul e branca], que por sua vez está dentro de [a casa de Lulu é
azul e branca]. Note-se que a oração completa é igualmente um constituinte.     15
 Você deve lembrar das análises gramaticais feitas  na escola. Na sentença em (14),
certamente você classificaria a casa de Lulu como sujeito e é azul e branca como predicativo
do sujeito, mas não classificaria Lulu é azul, não é mesmo? E isto porque Lulu é azul não é
um constituinte.
 Esses constituintes são organizados em categorias gramaticais. Desde muito cedo (e
isto faz parte da nossa competência lingüística), embora não tenhamos consciência disto,
reconhecemos e somos capazes de agrupar as palavras da nossa língua de acordo com suas
propriedades gramaticais.
 Se pedirmos, por exemplo, a qualquer falante de português para agrupar palavras
como: menino, brincamos, gato, mesa, cantou e jogarei, ele não terá dificuldade em dizer que
menino, gato e  mesa são palavras que compartilham certas características, assim como
brincamos, cantou e  jogarei, também apresentam características em comum. Os falantes
sabem que cada um destes grupos pertence a uma determinada categoria gramatical. Sabem
ainda que o grupo de palavras constituído por menino, gato e mesa não varia de acordo com o
tempo que a sentença quer expressar (se passado, presente ou futuro) ou com as marcas da
pessoa que o antecede, por isso, os falantes não flexionam essas palavras como: meninamos,
gatou ou  mesarei, flexões verbais, nem mesmo as crianças em processo de aquisição da
linguagem; evidência de que há algo inato determinando esse conhecimento. Já o grupo de
palavras formado por brincamos, cantou e jogarei, apresenta a propriedade de indicar tempo e
de assumir formas variadas dependendo dos traços morfológicos de seus sujeitos. Essas
marcas morfológicas fornecem pistas para que o falante possa distinguir a categoria
gramatical de verbo, por exemplo. Outro critério que nos fornece pistas da categoria
gramatical de um determinado item lexical é a posição que ele ocupa na sentença. Voltaremos
a essas questões na Temática II, na seqüência.
 Os constituintes se combinam hierarquicamente para formar sentenças. Isso quer dizer
que as sentenças se organizam em constituintes que, por sua vez, são formados de outros
constituintes. Vamos analisar o exemplo em (15), a seguir:
(15) Os meninos fizeram uma tremenda bagunça
 Sabemos que para formar essa sentença, primeiro, temos de juntar a palavra bagunça
com tremenda formando o constituinte hierarquicamente superior [tremenda bagunça] que se      16
junta ao item lexical uma formando o constituinte hierarquicamente superior [uma tremenda
bagunça]. Fazemos isso também com o vocábulo  meninos que se junta a  os  formando o
constituinte [os meninos]. A forma verbal fizeram
4
 se junta ao constituinte [uma tremenda
bagunça]  formando um constituinte hierarquicamente superior  [fizeram uma tremenda
bagunça] que, por fim, se junta ao constituinte  [os meninos] formando a sentença. A
combinação dos constituintes que formam a sentença em (15) está representada abaixo:
 
Os           meninos             fizeram              uma                tremenda               bagunça
Os           meninos   fizeram              uma                tremenda                bagunça
Os    meninos   fizeram     uma                 tremenda                bagunça
   uma     tremenda                bagunça
   tremenda  bagunça
 Em resumo, as sentenças são formadas de constituintes, que se organizam em
categorias gramaticais, de acordo com suas propriedades gramaticais, ou seja, a partir das
características compartilhadas com outros constituintes. Os constituintes, para formar
sentenças, combinam-se de forma hierárquica. Como já dito, essa questão será retomada nas
próximas unidades.
LEITURAS COMPLEMENTARES
MIOTO, Carlos; FIGUEIREDO SILVA, Maria Cristina; LOPES, Ruth.  Novo Manual de
Sintaxe. Florianópolis: Insular, 2004 (capítulo 1).
NEGRÃO, Esmeralda, SCHER, Ana Paula e VIOTTI, Evani de Carvalho. A competência
lingüística. In: FIORIN, José Luiz (org.) Introdução à Lingüística II: Princípios de análise.
São Paulo: Editora Contexto, 2002.
RAPOSO, Eduardo Paiva.  Teoria da gramática. A faculdade da linguagem. 2. ed. Lisboa:
Editorial Caminho, 1992 (capítulo 1).
                                               
4
 Observe que a forma verbal fizeram poderia se desmembrar morfologicamente (radical+desinências).      17
Temática II – OS SINTAGMAS
Você já parou para observar os vocábulos que compõem as diversas línguas
particulares como a LIBRAS, o português, o inglês, o japonês etc?. Num primeiro momento,
uma coisa é certa: conseguimos em todas as línguas particulares dividir os vocábulos em (no
mínimo) dois grandes grupos
5
 - os Nomes e os Verbos. Uma outra grande questão que se
coloca é: por que precisamos dividir os vocábulos de uma língua e classificá-los? E o que é
muito interessante numa possível classificação é que dispomos de diferentes classes de
vocábulos (o que chamaremos de átomos lingüísticos) para, a partir de certa “criatividade”,
gerar um número infinito de sentenças nas mais variadas línguas naturais.
É importante lembrar que, de acordo com discussão nas Unidades 1 e 2, fazer sintaxe é
recursivamente juntar elementos, constituintes, sintagmas, em busca de unidades maiores,
mais complexas e elaboradas, portanto. No processo  de junção, a noção de hierarquia é
fundamental tendo em vista que para fazer sintaxe não juntamos aleatoriamente os elementos.
Você certamente nunca entrou em contato com uma sentença como (16), a seguir. No entanto,
consegue atribuir um significado à sentença. Um dos motivos pelos quais isso é possível é que
conseguimos  decompor a sentença em (16) em constituintes menores:  [uma aranha
vermelha];  [avançou];  [o sinal azul na Avenida Beira Mar]. Ou ainda:  [uma aranha];
[aranha]...
O que fizemos num primeiro momento foi dividir a sentença em sintagmas (nominais
e verbais); depois dividir os sintagmas (no caso um nominal) em constituintes menores (os
átomos lingüísticos) – artigo, nome, adjetivo.
(16) Uma aranha vermelha avançou o sinal azul na Avenida Beira Mar em Florianópolis
Está claro para você o que é um constituinte? Olhemos mais de perto para esta noção.
Podemos dizer que  um constituinte é uma unidade sintática construída  hierarquicamente.
Nesse sentido, um sintagma se constitui a partir de relações (hierárquicas) e se pensarmos
nestas relações a partir dos diferentes vocábulos que constituem uma sentença como (16), por
exemplo, observamos que nos três sintagmas elencados acima todas as demais palavras estão
relacionadas ora a um nome [aranha]/[sinal] e ora a um verbo [avançar]. Observamos, então,
                                               
5
 Observe que esta classificação dos vocábulos formais das línguas foi proposta já por Aristóteles.     18
que todo constituinte se constrói a partir de um núcleo. Este núcleo, por sua vez, pode ser
lexical ou funcional.
Nas Unidades 3 e 4, a seguir vamos olhar, mais detalhadamente, para algumas das
características das categorias – ou núcleos – lexicais, especialmente aquelas atreladas aos
nomes, aos verbos, aos adjetivos e às preposições,  e das categorias funcionais (ou
gramaticais).
Unidade 3. Categorias lexicais
Vamos retomar a discussão a respeito dos nomes e verbos. Observando os itens
lexicais de uma língua, como o português ou LIBRAS, por exemplo, percebemos que tais
itens podem (de acordo com critérios morfológicos,  distribucionais e semânticos) ser
classificados num número finito de categorias lexicais. O que parece ser uma propriedade
universal nas mais variadas línguas naturais é a divisão das palavras (ou do léxico, num uso
mais técnico do termo) a partir dos traços verbais e nominais. Podemos, pois, com base nesses
dois traços (verbal e nominal) descrever quatro (grandes) categorias lexicais nas línguas
naturais: aquelas que têm traços nominais, mas não têm traços verbais: os NOMES; aquelas
que têm traços nominais e traços verbais: os ADJETIVOS; aquelas que não têm traços
nominais nem traços verbais: as PREPOSIÇÕES; e aquelas que não têm traços nominais e
têm traços verbais: os VERBOS. Pois bem, temos, como você pode perceber, quatro núcleos
lexicais que estão representados no quadro 1 abaixo
6
:
QUADRO 1. Núcleos lexicais
 [+N] [-N]
[-V] NOME PREPOSIÇÃO
[+V] ADJETIVO VERBO
Diríamos que os traços são, de fato, os melhores amigos dos lingüistas, ou daqueles
que se interessam por descrever e explicar os (diversos) fenômenos atrelados às línguas
naturais. Sobre os traços verbais e nominais, em específico, e considerando algumas
                                               
6
 Para uma discussão mais detalhada a respeito deste assunto, sugerimos a leitura dos capítulos I e II de Mioto,
Figueiredo Silva e Lopes (2004).     19
propriedades (i) morfológicas, (ii) distribucionais e (iii) semânticas dos itens lexicais que
compõem o léxico das línguas naturais, busquemos compreender as características das
categorias (ou núcleos) lexicais aqui estudadas:  os nomes,  os verbos,  as preposições e  os
adjetivos.
Mesmo sem reconhecer o item lexical fedruxar em (17) e (18), como uma palavra do
português, conseguimos perceber algumas propriedades deste vocábulo tendo em vista os
critérios (i), (ii) e (iii) já por nós listados
7
. Em primeiro lugar, observamos na sentença em
(17) que o vocábulo fedruxar apresenta uma morfologia particular que “carrega” tempo/modo
e pessoa/número nas flexões -vá e -mos, respectivamente. Percebemos ainda que tal vocábulo
está distribucionalmente alocado numa determinada posição da estrutura, de modo que
preferencialmente tal posição parece ser aquela entre um agente “aquele que faz a ação de
fedruxar” e um objeto “a coisa  fedruxada”, como em (17). A sentença (18) em que o
vocábulo fedruxar aparece numa posição final da estrutura não nos parece ser uma sentença
boa em português. Em terceiro lugar, percebemos que o item fedruxar está semanticamente
relacionado a outros constituintes  [Maria e eu e o cabelo], de modo que atribuímos ao
primeiro constituinte [Maria e eu] um papel de agente e ao constituinte [o cabelo] um papel
de tema. Essa discussão será retomada na Temática III.  
(17) A Maria e eu fedruxavámos o cabelo
(18) ? A Maria e eu o cabelo fedruxávamos
8
     
(19) Fedruxar [A Maria; o cabelo]
Observamos que as propriedades morfológicas, distribucionais e semânticas
depreendidas de um vocábulo desconhecido, como o item fedruxar em (17), numa estrutura
são aquelas compartilhadas por muitos outros vocábulos classificados como  verbos em
português. Mais especificamente, reconhecemos que o vocábulo em questão estabelece uma
relação entre os demais elementos que constituem a sentença, propriedade esta característica
                                               
7
 Percebemos ainda outros elementos como o fato de este vocábulo ser formado por uma seqüência de sons que
se combinam em sílabas com uma determinada seqüência CV/CCV/CVC, de acordo com o padrão fonotático do
português do Brasil, conforme você viu na disciplina de Fonética e Fonologia.
8
 O ponto de interrogação “?” indica que a estrutura parece não ser uma sentença bem formada nessa língua; no
caso apresentado em (18), por questões relacionadas com a ordem dos constituintes.      20
dos verbos. Esse conhecimento não nos é ensinado. Ele faz parte da nossa competência
lingüística como falantes de português.
Observe agora o vocábulo  apalaia nas sentenças em (20)-(23), a seguir. Você
certamente nunca entrou em contato com esse vocábulo em português. No entanto,
observando as estruturas nas quais ele aparece e tendo em vista os critérios morfológicos,
distribucionais e semânticos, conforme discutimos acima, você é capaz de classificar
(minimamente, ao menos) esse vocábulo na gramática do português. Qual classificação você
arriscaria?
(20) A apalaia está quebrada
(21) As apalaias quase sempre quebram
(22) As belas apalaias quase sempre quebram
(23) A Maria gosta de apalaias quebradas
Vejamos. A começar pela morfologia depreendida a partir da observação (sempre
numa relação de oposição) das sentenças (20) e (21), constatamos que a marca de plural se dá
no vocábulo com o acréscimo do morfema  -s. E, ainda, ao pluralizarmos o item lexical
apalaia, acrescentamos também uma marca de plural, estabelecendo uma relação de
concordância, no artigo a, que antecede o item apalaia, cf. (21). Você certamente identifica
que essa marca morfêmica é particular a muitas outras palavras do português, tais como nos
vocábulos  mesas,  chinelos,  cachorros  etc. Tais vocábulos nomeiam o mundo (em que
vivemos e até mesmo aqueles que idealizamos ou inventamos). Reconhecidamente apalaia,
nesse contexto, nomeia algo que nem mesmo sabemos do que se trata, mas sabemos
certamente que esse vocábulo está de fato nomeando uma substância nas sentenças listadas
acima.
Ainda dentro do Sintagma Nominal das sentenças em questão, identificamos que a
posição estrutural em que o vocábulo  apalaia aparece possui determinadas propriedades
bastante específicas. Em todas as posições, no entanto,  apalaia é o núcleo do sintagma
nominal.  E mais: de acordo com o arranjo sintático (ou com a formação composicional) em
(21), observamos que o item lexical  apalaia (seja lá qual substância tal coisa nomeie no
mundo) possui algumas propriedades semânticas, como a de ser quebrável, por exemplo.     21
Em linhas gerais, estamos diante de um vocábulo que nomeia uma determinada
substância, cujas propriedades nos conduzem a classificá-lo como um nome na gramática do
português. Observe que essa classificação é depreendida somente a partir das propriedades
morfológicas, distribucionais (ou sintáticas) e semânticas que tal item estabelece na relação
com os demais vocábulos numa determinada estrutura. Essas propriedades, como já
destacamos, fazem parte da gramática da língua adquirida.
Vimos até aqui, com exemplos do português, as propriedades de duas (grandes)
classes de vocábulos que constituem as diversas línguas naturais: os nomes e os verbos. É
importante observar que os nomes estão sempre associados a substâncias enquanto os verbos
a relações. Como vimos nos exemplos acima, de um lado, reconhecemos em fedruxar uma
relação entre os constituintes de uma determinada sentença e que é através desta relação que
caracterizamos (e classificamos) este item lexical como um verbo. De outro lado, mesmo não
reconhecendo o vocábulo apalaia como um item lexical do português, atribuímos a ele uma
substância o que o caracteriza (ou classifica) como um nome. Observe os exemplos a seguir.
(24) A Maria colocou o livro sobre a mesa  [em cima; abaixo; sobre a]
(25) *A Maria colocou o livro mesa
Num primeiro momento é bastante tranqüilo reconhecer o verbo  colocou, tendo em
vista a relação que este item estabelece com os demais itens da estrutura (colocar [Maria; o
livro; a mesa]) em (24). Reconhecemos ainda que os itens relacionados ao verbo são
substâncias e, por tal motivo, os reconhecemos como nomes (substantivos) nas sentenças (24)
e (25). Nesse contexto, o que você diria acerca do  item lexical  sobre na sentença (24)?
Observe a sentença (25) em que o item sobre não está presente.
Podemos constatar que o que garante a realização do vocábulo mesa na sentença (24) é
a preposição sobre [em cima; abaixo; sobre a]. Nesse caso, é a preposição que seleciona o
item  mesa. Observe na sentença (26), a seguir, que o item lexical  sobre possui algumas
restrições de seleção. Ele não pode selecionar um item como  amor, por exemplo, como
evidencia a estrutura a seguir.
(26) ?A Maria colocou o livro sobre o amor     22
Itens lexicais como  sobre [em cima; abaixo; sobre a] são classificados como
preposições tendo em vista que tais itens estabelecem relações entre substâncias e são núcleos
lexicais porque selecionam determinados elementos (ou constituintes) com base em
propriedades distribucionais e semânticas.
As preposições são marcadas pelos valores negativos [-Verbais; -Nominais] por não
apresentarem traços nominais de gênero e de número, nem traços verbais de tempo, modo e
pessoa. Os vocábulos com essas propriedades formam uma classe fechada nas gramáticas das
línguas, resistindo à formação de novos itens e não se derivam produtivamente a partir de um
radical que dá origem a vocábulos de outras classes.
Observe agora o item fininha nas sentenças (27)-(29), a seguir. Você reconhece nele
uma relação? Certamente não. A relação entre os itens das sentenças é estabelecida pelo item
cortou (cortar [Maria; a cebola]). Reconhece então no item  fininha uma substância?
Também não. Reconhecemos em Maria e cebola tal propriedade, conforme delineamos acima
para o item apalaia.
Valendo-nos das propriedades (i) morfológicas, (ii) distribucionais e (iii) semânticas
vamos delinear as características do item fininha nas sentenças a seguir.
(27) A Maria cortou a cebola fininha
(28) A Maria cortou as cebolas fininhas
(29) A Maria cortou fininha a cebola
Em primeiro lugar, observamos que o item lexical  fininha entra numa relação de
concordância de gênero e de número com o item  cebola em (27)  [cebola fininha –
feminino/singular] e em (28) [cebolas fininhas – feminino/plural]. Percebemos essa relação
devido à marca morfológica nos itens em questão. Você pode perceber que nessas sentenças o
item lexical  fininha está, de algum modo, relacionado ao item  cebola. Em segundo lugar,
podemos salientar que os itens cebola(s) e fininha(s) nas sentenças (27) e (28) estabelecem
uma relação semântica entre si. Nesse contexto, são as cebolas que a Maria cortou que têm a
propriedade e/ou característica de serem fininhas (e não as de serem grossas, por oposição).
Em outras palavras, percebemos que fininha é a propriedade da cebola cortada pela Maria.
Há, pois, uma relação entre os itens cebola e fininha.     23
Uma terceira questão é a ordem do item fininha em relação ao item cebola na estrutura
da sentença. Observe que na estrutura (29) o item lexical fininha precede o item cebola. A
relação semântica é estabelecida agora entre os itens  fininha e  cortou, ou seja, fininha é a
qualidade dos cortes que a Maria fez na cebola. Neste caso, o item lexical  fininha está
qualificando, de algum modo, o evento de cortar executado pela Maria e não a qualidade
(fininha ou grossa) da cebola.
Observe os exemplos em (30) e (31), a seguir.
(30) Maria cortou a(s) cebola(s) fininho
(31) Maria cortou fininho a(s) cebola(s)
Podemos constatar que itens lexicais como fininho na gramática das línguas naturais
podem a depender de propriedades morfológicas, distribucionais e semânticas se relacionar a
nomes (substâncias), adjetivando-os (qualificando-os), ou a verbos (relações) caracterizando a
relação por eles estabelecida. Não somente os critérios distribucionais caracterizam o item
fininho como estando relacionado ao verbo. Em (30), por exemplo, ele está numa posição
privilegiada para o adjetivo no português, ou seja, após o substantivo, mas a morfologia de
masculino singular estabelece a relação desse item  como o evento (de cortar a cebola)
realizado pela Maria.
Sumarizando as questões discutidas nessa Unidade 3, as categorias ou núcleos lexicais
possuem a propriedade de selecionar elementos tendo em vista determinadas características
(morfológicas, distribucionais e semânticas) na derivação de objetos sintáticos. A partir de
apenas dois traços distintivos, portanto, os núcleos lexicais podem ser classificados em
verbais [+V; -N], nominais [-V; +N], adjetivais [+V; +N] e preposicionais [-V; -N].
Unidade 4. Categorias gramaticais (ou funcionais)
Vimos, na unidade 3, que os núcleos lexicais nos permitem fazer sintaxe, ou seja,
juntar elementos recursivamente para formar constituintes maiores, mais complexos, portanto.
Nossa competência lingüística, no entanto, dispõe de um outro conhecimento para que
possamos fazer sintaxe: reconhecemos categorias gramaticais (ou funcionais) nos
constituintes complexos formados. Pensemos. Temos categorias lexicais (e dentre elas os     24
núcleos nominais, verbais, preposicionais e adjetivais que se juntam, ou se combinam, na
sintaxe. Essa “juntação” ou “combinação”, por sua vez, é guiada, também, por categorias
funcionais. Diríamos que são as categorias funcionais que fazem a máquina da sintaxe
efetivamente funcionar; ou, ainda, que a sintaxe é motivada pela manifestação dos traços das
categorias funcionais. Observe as sentenças a seguir.
(32) A Maria cortou/cortava o bolo/A Maria cortará o bolo
(33) A Maria vai cortar o bolo
(34) *A Maria cortar o bolo
(35) A Maria vai cortar o bolo amanhã/hoje/agora/*ontem
De algum modo as línguas naturais, ao “combinar” os elementos para formar
constituintes, precisam sinalizar (ou, em outras palavras, marcar) propriedades como Tempo,
Modo e Aspecto, por exemplo. No caso do português a marca de tempo e de modo tem que
vir necessariamente expressa no verbo da estrutura, isso faz com que a sentença (32) seja
agramatical (ou não possível) na gramática dessa língua. O que é interessante destacar é que a
categoria tempo, aspecto e modo é expressa no português, muitas vezes, na morfologia do
verbo principal como em (32) ou no verbo auxiliar como em (33), muito embora possamos
ainda marcar o tempo, modo (e aspecto) também com alguns advérbios, como em (35).
Além dos traços flexionais
9
 de tempo, modo e aspecto, as línguas naturais dispõem,
ainda, de traços de número e de pessoa (nos itens verbais) e também de gênero (nos itens
nominais). Observe as sentenças a seguir.
(36) A Maria ganhou um presente
(37) A Maria e a Joana ganhariam um presente
(38) Eu, a Maria e a Joana ganharemos um presente
Percebemos que as marcas morfológicas sublinhadas nos verbos das estruturas
carregam traços de pessoa e número [ganhou → 3ª pessoa do singular; ganhariam → 3ª
                                               
9
 A distinção entre morfologia flexional e morfologia derivacional foi trabalhada já no curso de morfologia. Caso
você tenha dificuldades em articular esses conceitos reler o Capítulo 10 de Mattoso Câmara Jr. (1970)  e o
Capítulo 9 de Rocha (1998).     25
pessoa do plural; ganharemos → 3ª pessoa do plural] e de tempo e modo  [ganhou →
pretérito perfeito do Indicativo; ganhariam → futuro do pretérito do Indicativo; ganharemos
→ futuro do presente do Indicativo]. Há, pois, uma sintaxe na formação quer da estrutura
morfológica do verbo quer da sentença. Como podemos observar, no português a estrutura de
flexão do verbo se dá a partir da raiz, da vogal temática (se for o caso), do morfema de tempo
e modo e do morfema de número e pessoa. Retomando as sentenças listadas acima, não
podemos formar o item *ganhamosre ou *mosreganha, por exemplo.
Observamos, ainda, que há uma morfologia bastante específica para os verbos na
gramática do português, de modo que as regras que operam na gramática dessa língua não
permitem fazer sintaxe, ou juntar morfemas de tempo e modo ou de número e pessoa a itens
não verbais, como mostra a agramaticalidade de itens como *mesamos e *Mariaei, por
exemplo.
Sem que nos tenham dito, somos capazes de saber que, no português, podemos juntar
o morfema -vel a um item lexical como surfe e formar [surfável]; no entanto, nunca podemos
juntar esse morfema a um item como  mesa  para formar [*mesável], por exemplo. Nossa
competência lingüística como falantes de português  nos permite depreender tal processo
(gramatical) de maneira bastante natural. Uma criança em fase de aquisição pode até
generalizar um processo gramatical de uma Língua, e produzir um item como “fazi” tendo em
vista que essa é a marca morfológica que designa a primeira pessoa do singular no pretérito
perfeito do indicativo de modo mais regular no português, em vocábulos como “dormi”,
“comi”, “li”, “escrevi” etc. Percebemos, todavia, que não podemos juntar determinados
morfemas a determinados vocábulos, de modo que há uma regra bastante clara que nos
permite juntar o morfema -vel a verbos e não a nomes, por exemplo.
Para ilustrar o que foi dito acima, observe algumas situações descritas em Rocha
(1998), em que novas palavras foram criadas.
Situação 1: pai e filho passeiam pelo terreiro. De repente, o filho vê uma formiga e pisa em
cima dela. Como ela permanece imóvel, o filho afirma:
─ Pai, a formiga morreu!
Segundos depois, a formiga volta a andar e o filho exclama:
─ Pai, a formiga desmorreu!      26
Situação 2: Perguntando sobre o que seria quando crescer, o mesmo “filho” da situação 1
respondeu:
─ Fabricador de carro!
Situação 3: Em seu conhecido programa de televisão, o entrevistador Jô Soares, após saber
que determinado integrante de uma banda tinha o costume de colocar apelido em todo
mundo, exclamou:
─ Ah, esse é o apelidador da turma!
         (ROCHA 1998, p. 21)
Em resumo, os constituintes ou núcleos funcionais possuem a propriedade de
selecionar argumentos. Esses núcleos estão associados a funções gramaticais (como a de
carregar traços de tempo, aspecto, modo e de pessoa, número) nas línguas naturais.
LEITURAS COMPLEMENTARES
MATEUS, Maria Helena Mira; BRITO, Ana Maria; DUARTE, Inês & FARIA, Isabel Hub
(2003). Gramática da Língua Portuguesa. 6ª ed. Lisboa: Caminho. (Introdução e 1º Capítulo)
MIOTO, Carlos; FIGUEIREDO SILVA, Maria Cristina; LOPES, Ruth.  Novo Manual de
Sintaxe. Florianópolis: Insular, 2004 (capítulo 1).
NEGRÃO, Esmeralda, SCHER, Ana Paula e VIOTTI, Evani de Carvalho. A competência
lingüística. In: FIORIN, José Luiz (org.) Introdução à Lingüística II: Princípios de análise.
São Paulo: Editora Contexto, 2002.
RAPOSO, Eduardo Paiva.  Teoria da gramática. A faculdade da linguagem. 2. ed. Lisboa:
Editorial Caminho, 1992 (capítulo 1).
              27
Temática III - PREDICADOS E ARGUMENTOS
 Como vocês viram na disciplina Introdução aos Estudos Lingüísticos e na Temática I
deste Curso, a  Sintaxe se ocupa de estudar as propriedades de combinação  de certas
expressões lingüísticas. Essas propriedades determinam a construção e a estruturação das
sentenças de uma determinada língua. Para a construção de uma sentença acessamos,
primeiramente, nosso léxico mental, isto é, o conjunto de elementos que temos em nossas
mentes/cérebro. Esses elementos se combinam formando constituintes e esses se organizam
em unidades maiores formando as sentenças. As sentenças são como “pequenas cenas” que
usamos em diferentes situações para a expressão do pensamento.  
 É importante considerar que essas “pequenas cenas” se organizam, principalmente,
com aquilo que o  léxico mental dispõe. Ele possui, por exemplo, informações categoriais
sobre as palavras que contém. Essas palavras já vêm com informações relevantes a respeito da
categoria a que pertencem (verbo, nome, adjetivo, por exemplo, como vimos na unidade 3),
das possibilidades de aparecerem como núcleos das sentenças e das restrições impostas aos
elementos que se relacionam com eles. Passaremos a  chamar aqui esses núcleos de
predicados
10
 e aos elementos selecionados por eles de argumentos para usar a terminologia
conhecida na teoria gerativa, que pode ser assim definida, segundo Negrão et al (2003, p.
100):
• Predicados são itens capazes de  impor condições sobre os elementos que com eles
compõem o constituinte do qual são núcleos (núcleos lexicais); são, portanto, itens que
possuem a capacidade de selecionar elementos.
• Argumentos são itens que satisfazem as exigências de combinação dos predicados, ou ,
em  outras palavras, são elementos selecionados pelo predicado.
 É a respeito dessas pequenas cenas que vamos tratar nesta unidade, com atenção
especial a formação das sentenças, bem como as exigências sintáticas dos predicados. Antes,
porém, vamos mostrar como se constroem as representações das sentenças em árvores.
                                               
10
 É importante ressaltar aqui que a noção de predicado não corresponde à noção de que faz uso a gramática
normativa. Para a teoria gerativa, além do verbo, todas as categorias como nomes, adjetivos, advérbios e
preposições também podem ser consideradas predicados (ou núcleos lexicais). Esse termo foi cunhado da lógica
clássica.      28
Unidade 5: Exigência sintática dos argumentos
 Como já vimos, na teoria Gerativa afirma-se que todas as línguas humanas dispõem de
um sistema modular inato, a  Faculdade da Linguagem, formado por categorias, que são
determinadas por Princípios e Parâmetros. Vimos também que os princípios gramaticais
universais são invariantes nas línguas naturais e determinam a natureza e a aquisição da
estrutura gramatical. Embora haja princípios universais que determinam as linhas gerais da
estrutura gramatical, há também aspectos particulares dela que estão sujeitos à variação entre
as línguas particulares, os parâmetros. Na medida em que os parâmetros vão se fixando, as
gramáticas das línguas particulares vão se constituindo.
 Vamos agora trazer um novo conceito para discutir com você nesta unidade, a respeito
da descrição abstrata que a teoria gerativa faz das sentenças de uma língua, o esquema Xbarra (X’). Postula-se que as categorias (determinadas por Princípios e Parâmetros) se
submetem ao esquema X-barra. Esse esquema é o módulo da gramática que permite
representar a natureza de um constituinte, as relações que se estabelecem dentro dele e o
modo como se hierarquizam para formar as sentenças. Configura-se como um esquema geral
capaz de projetar uma estrutura frasal com as principais categorias lexicais e funcionais
11
, no
qual aparecem distribuídas as posições de  núcleo,  especificador e  complemento. Essas
posições podem ser visualizadas em forma de árvore (estrutura arbórea) e estão assim
representadas:
   
(39)              XP
      /      \
            YP       X’
                       /     \
                  X
o  
       ZP
Como já sabemos, todo constituinte se constrói a partir de um núcleo. A variável X do
esquema acima é usada para representar qualquer núcleo, a partir do qual as relações são
estabelecidas. Cada núcleo lexical/predicado (nome, verbo, adjetivo e preposição) pode
                                               
11
 Sugerimos que você retome as discussões a respeito das categorias lexicais e funcionais que foram
apresentadas nas unidades 3 e 4 para entender melhor essa discussão.      29
projetar uma posição de  especificador (YP) e uma posição destinada aos  complementos
(ZP), visualizada em (40).
(40)              XP
      /      \
            Spec       X’
                        /     \
                    X
o  
      Compl
Da mesma forma que as categorias lexicais, as categorias funcionais projetam as
posições de especificador e complemento, obedecendo à mesma estrutura hierárquica
ilustrada acima. Vale lembrar que, enquanto os núcleos lexicais – interessa-nos aqui em
particular o  verbo – têm a capacidade de selecionar semanticamente seus argumentos, os
núcleos funcionais, como, por exemplo, a flexão (INFL), codificam certas propriedades
gramaticais que definem se uma sentença é finita ou infinitiva. Consideremos agora uma
sentença sem tempo (isto é, sem flexão), como [João comprar um carro] representada na
estrutura arbórea (41)
(41)              VP
       /          \
            SN              V’
         João          /        \
                        V
o  
       SN
                     comprar     um carro
Para falar da posição hierárquica (estrutural) que os argumentos ocupam na sentença,
vamos reconhecer duas áreas, a área direita, composta de sintagmas que seguem o núcleo e a
área esquerda, composta de sintagmas que o precedem. Em (41), a sentença [João comprar um
carro] está representada na Estrutura Profunda (EP)
12
. O item lexical comprar (ou predicado)
está na posição de núcleo da sentença e se relaciona com dois argumentos, um à sua direita
                                               
12
 Você também poderá encontrar o termo EP, em textos da área, representado pela sigla DS, do inglês Deep
Structure. Estrutura Profunda (EP) é considerada na teoria gerativa (no modelo de Regência e Ligação) um nível
de representação de base de uma sentença, antes de qualquer movimento de constituintes.     30
(relação simétrica) e outro à sua esquerda (relação assimétrica). O núcleo subcategoriza o
complemento (o argumento interno), mantendo uma relação de irmandade (de irmãos mesmo)
com ele, uma vez que ambos são imediatamente dominados por V’, como podemos observar
na representação arbórea (41), comprar e um carro estão dominados pelo mesmo elemento,
V’. Já o argumento externo não é subcategorizado pelo núcleo, mas selecionado, visto que a
relação entre os dois não é de irmandade, e o  especificador está mais alto que o verbo na
estrutura.
Vejamos agora o esquema arbóreo relacionado aos núcleos funcionais. Da mesma
forma que os núcleos lexicais, os funcionais encabeçam constituintes, mas têm função
eminentemente gramatical. Como o esquema X-barra se aplica a qualquer constituinte lexical
ou funcional, I, nesse caso deve ser o núcleo do constituinte IP, representado em (42), com
um complemento e uma posição de especificador.
(42)                 IP
        /         \
            spec            I’
                           /         \
                       I
o  
         compl
Vejamos agora como ficaria a representação arbórea de uma sentença com tempo (isto
é com flexão) como em [João comprou um carro]. Esta sentença agora está representada em
Estrutura Superficial (ES)
13
, com uma projeção de VP e uma de IP. Vejamos.
                                               
13
 Estrutura Superficial (ES) é considerada neste modelo um nível de representação de uma sentença que vai ser
interpretada fonologicamente por PF (como a estrutura é pronunciada) e semanticamente por LF (qual o sentido
da sentença).     31
(43)                  IP
      /             \
            spec                 I’
         João i                /            \
                               I
o  
               VP
                         comprou j            /         \
                                              spec          V’
                                               ti              /        \
                                                          V
o  
       SN
                                                          tj        um carro
Como podemos observar em (43), os movimentos estão  representados da seguinte
forma: o constituinte movido ganha um índice (subscrito), como em [João i] e [comprou j], e
no lugar do elemento movido vai aparecer um vestígio (t), do inglês  trace, com o mesmo
índice do elemento movido: ti e tj, respectivamente. De modo geral, podemos dizer que o
argumento externo  João se alçou para a posição de especificador do núcleo funcional (IP)
para requisitos de Caso nominativo
14
. E o argumento interno  um carro, ou o objeto,
permanece na posição de complemento. Na verdade, o que se conhece como sujeito e como
objeto é resultado de uma configuração estrutural, de forma que, nessa relação, objeto direto é
o constituinte que ocupa a posição de complemento do verbo e sujeito é o constituinte que
ocupa a posição de especificador de IP.
Como a posição de sujeito – tratada de agora em diante como posição de especificador
de IP - é obrigatória (constitui um dos Princípios das línguas naturais), mesmo que um verbo
não selecione um argumento externo, ela vai ser ocupada, na ES, ou por um argumento
interno, movido da posição em que recebe papel temático, ou por um pronome expletivo (isto
é, pronome sem significado referencial, como it do inglês em sentenças como em It rains). O
movimento de um argumento para a posição de especificador de IP é legitimado por questões
de Caso. Vejamos como seria representada uma sentença como [O carro chegou].
                                               
14
 A noção de Caso nominativo está ligada à atribuição de Caso abstrato, pelo núcleo funcional I, ao argumento
que vai para a posição de especificador de IP, dando a este argumento estatuto de sujeito. Essa discussão será
retomada nesta mesma unidade.      32
(44)               IP
      /             \
            spec                 I’
         o carro i          /            \
                               I
o  
            VP
                         chegou j               \
                                                     V’
                                                  /        \
                                             V
o  
       SN
                                             tj              ti
O sintagma nominal  o carro se move da posição de complemento do verbo  chegar
para a posição de especificador de IP, passando a concordar com o verbo chegar. Note-se que
o carro só vai para a posição de sujeito (posição de especificador de IP) porque nesta sentença
não há argumento externo, diferentemente do que acontece em (43).  
Antes de discutir as questões de Caso, em uma língua como o português, vale lembrar
que a teoria gerativa prevê que a Faculdade da Linguagem (FL) deve conter um mecanismo
que desloca sintagmas de sua posição de base (aquela posição em que ele foi gerado, EP) para
alocá-los em outras posições na sentença
15
. É bastante comum, nas línguas, que os verbos se
desloquem de sua posição de base para o núcleo da flexão (I), a fim de se completarem
morfologicamente. Esse movimento deve acontecer de núcleo a núcleo, obedecendo, assim, a
restrição de movimento nuclear (Head Movement Constraint).
Costuma-se dizer, na teoria gerativa, que as condições de boa formação de uma
sentença estão diretamente ligadas à atribuição de  Caso e de papel temático
16
 para os
sintagmas nominais. Os sintagmas que aparecem/são realizados como sujeitos das sentenças,
por exemplo, devem receber Caso nominativo da flexão. Nesse contexto da flexão, o verbo se
movimenta para I para amalgamar sua flexão e o sintagma nominal se movimenta para
receber Caso nominativo de I, deixando um vestígio  em sua posição de base, com o qual
forma uma cadeia: a cadeia por movimento. O movimento do sintagma nominal realiza-se de
uma posição temática (θθθ) e não Casual (não-K) para uma posição não-temática (não-θθθ) e
                                               
15
 Tal mecanismo é conhecido na Teoria Gerativa como mova ααα.
16
 Papel temático será discutido na unidade 7.      33
Casual (K). A esse conjunto de posições não-temática e temática de um mesmo sintagma
nominal dá-se o nome de cadeia, representada aqui em (45).  
(45)     [ SN,            t ]
           não-θθθ          θθθ
            K         não-K  
Vale lembrar que a marcação casual dos sintagmas nominais é um fenômeno universal
nas línguas naturais e não apenas uma propriedade das línguas que possuem marcas casuais
morfológicas. A diferença entre as línguas é a forma como essa marcação se expressa: nas
línguas que têm marcação morfológica de Caso, ele se expressa concretamente (como era o
caso do latim, por exemplo); e nas que não manifestam marcação nos morfemas, ele se
expressa abstratamente (como é o caso do português  e de LIBRAS), daí a noção de Caso
abstrato na sintaxe. O modelo, com o qual trabalhamos, prevê que todos os sintagmas
nominais foneticamente realizados manifestem um Caso, do contrário, são excluídos pela
gramática. Vejamos em que direção.
Do ponto de vista deste modelo, a atribuição casual a um sintagma nominal é feita sob
regência ou concordância especificador/núcleo do sintagma pela categoria que lhe atribui
Caso. O Caso pode ser atribuído pela flexão (Caso nominativo), pelo verbo (Caso acusativo) e
pela preposição (Caso oblíquo). O Caso nominativo manifesta-se em um sintagma nominal na
posição de especificador de IP; o Caso acusativo manifesta-se na posição de um complemento
de um verbo transitivo e o Caso oblíquo manifesta-se na posição de um complemento de uma
preposição.
Enfim, há restrições semânticas e sintáticas de combinação de verbos e possíveis
sintagmas com determinados papéis temáticos e Caso
17
. Para a nossa discussão, nesse
momento, basta salientar que o Caso nominativo é atribuído a sintagmas que figuram como o
sujeito da sentença e Caso acusativo para sintagmas que figuram como objeto da sentença.
Caso nominativo está diretamente relacionado, no português, à marcação da concordância
sujeito-verbo e Caso acusativo à não-marcação da concordância e à possibilidades de se
                                               
17
 Vamos discutir aqui Caso abstrato rapidamente, mas se você quiser saber mais detalhes, consulte Mioto et al.
(2004).     34
cliticizar o objeto, ou seja, à possibilidade de alternar o sintagma nominal por um clítico
18
. Os
exemplos em (46) ilustram essas propriedades.
(46) a. A Maria comprou um carro velho
        b. A Maria comprou-o  velho (o= um carro)
Em (46a), a flexão do verbo comprou atribui Caso nominativo para o sintagma A Maria e em
(46b) o verbo comprar atribui caso acusativo para um carro.
O português é uma língua em que os sintagmas nominais não são marcados morfologicamente
por Caso (a marcação é abstrata). Entretanto, resíduos de marcas casuais podem ser
observados no sistema dos pronomes pessoais:  eu é a forma do Caso nominativo, me é a
forma do Caso acusativo e  mim a forma do Caso oblíquo, como podemos observar nas
sentenças em (47).
(47) a. Eu vi a Maria
  b. A Maria me viu
  c. A Maria deu um livro para mim
O fato de os pronomes ainda manifestarem Caso explícito, pode servir como evidência de que
existe marcação de caso no português.
 Pois bem. Você deve ter observado que até agora mostramos, de maneira bem sucinta,
como se constroem as representações das sentenças em árvores nos níveis EP e ES, utilizando
a teoria X-barra. Mostramos também a relação dos núcleos lexicais e funcionais com os
constituintes que ocupam a posição de complemento e de especificador para a composição da
estrutura interna das sentenças. Você achou essa discussão muito abstrata? Não se preocupe,
vamos discutir a seguir as imposições sintáticas dos predicados para a boa formação de uma
sentença, como se fossem “pequenas cenas” com exemplos do português.
Primeiramente, para tratar das exigências sintáticas de formação das sentenças, vamos
retomar aqui a discussão feita na Temática II
19
 a respeito das diferenças entre verbo e nome.
                                               
18
 Por clítico entende-se um elemento fonologicamente dependente do verbo.
19
 Seria importante que você retomasse as unidades 3  e 4, referentes a categorias lexicais e funcionais, antes
dessa discussão.     35
Verbos e nomes têm distribuição diferente nas línguas, como você pode facilmente constatar
nos exemplos abaixo:
(48)  a João comprou um carro na semana passada.
        b *João a compra um carro na semana passada.
(49)  a. A compra do carro foi feita na semana passada.
         b. *A comprou do carro foi feita na semana passada.
As sentenças (48) e (49) descrevem uma cena de  compra de um carro. Em (48a) o
verbo  comprar estabelece um evento de compra entre os sintagmas  nominais  João e  um
carro. O verbo comprar é o predicado da sentença, por exigir a presença de dois participantes
para comporem a cena. Os itens selecionados (ou impostos) são chamados de argumentos; é
como se o verbo possuísse lacunas que deveriam ser  preenchidas por argumentos. Essas
lacunas são chamadas de lugares. No exemplo (48a),  os sintagmas  João e  um carro são
argumentos do predicado comprar. O lugar do argumento João e o lugar do argumento um
carro são imposições sintáticas do predicado  comprar, um verbo de dois lugares. O que
equivale a dizer que é impossível montar uma sentença com o verbo comprar sem colocar
dois sintagmas do tipo João, um comprador,  e um carro, a coisa comprada.  
Quanto aos constituintes comprar e compra (exemplos 48 e 49, respectivamente), o
importante aqui é notar que os dois elementos figuram como núcleos, e não são
substancialmente diferentes; ambos exigem, pelo menos, um argumento que indique o objeto
comprado (um carro). Já  na semana passada, por sua vez, não faz parte da estrutura
argumental do verbo, nem do nome. A falta desse constituinte não torna a sentença
agramatical, como em (50).
(50) João comprou um carro
Entretanto, a falta de um dos dois argumentos selecionados pelo verbo, como em (51), torna a
sentença agramatical/impossível.  
(51) a *João comprou.      36
       b *Comprou um carro
Vale lembrar aqui que (51) só seria possível se os argumentos um carro e João estivessem
implícitos.
 Considere agora os exemplos em (52), abaixo:
(52) a. João deu um carro para sua namorada
        b. O carro chegou
 Na sentença (52a), o predicado dar precisa de três argumentos para se combinar com
ele, representados aqui pelos participantes: um carro, sua namorada e João. O que significa
dizer que é um verbo de três lugares. A falta de qualquer um dos três argumentos torna a
sentença agramatical. Já em (52b), o predicado  chegar impõe a necessidade apenas de um
argumento, o carro, por isso é considerado um verbo de um lugar. Mas, novamente, a falta
desse único argumento também torna a sentença agramatical.
 Enfim, nas cenas apresentadas nos exemplos (48) e (52), os verbos  comprar, dar e
chegar vão ser considerados núcleos (também denominados predicados), já que esses termos
são responsáveis por todas as exigências impostas aos argumentos das sentenças. São eles que
vão impor o número de argumentos (dois, três ou um, respectivamente) a ser selecionado.
Verbos de dois lugares também são conhecidos como verbos transitivos/biargumentais,
verbos de três lugares são conhecidos como verbos bitransitivos/triargumentais e verbos de
um lugar, como verbos monoargumentais.
 Os argumentos selecionados por um verbo de dois argumentos como comprar são de
duas naturezas: externos e internos. Há pelo menos duas grandes relações que precisam ser
construídas com esses tipos de verbos:
(i) a relação que se estabelece entre o núcleo e seu complemento, formando o
sintagma verbal (SV);
(ii) a relação que se estabelece entre o SV e o argumento externo, completando a
pequena cena (ou a sentença).
 Nesse momento vocês poderiam nos fazer as seguintes perguntas:
• Como os argumentos de comprar se juntam ao verbo?      37
• Será que o fazem ao mesmo tempo?
 
 Evidências sintáticas nos mostram que, numa construção transitiva, é o argumento
interno que se junta primeiramente ao verbo, ocupando a posição de complemento. O núcleo e
o complemento, juntos, vão impor restrições ao segundo argumento denominado externo. A
posição ocupada pelo argumento externo é chamada de especificador. Nesse caso, dizemos
que argumento interno ocupa a posição de complemento e argumento externo ocupa a posição
de especificador.
 De modo geral, podemos dizer que são internos os argumentos que figuram como
objetos e externos os argumentos que figuram como sujeitos das sentenças. Na verdade, o que
se conhece como sujeito e como objeto é resultado de uma configuração estrutural. Objeto
direto é o constituinte que ocupa a posição de complemento do verbo e sujeito é o constituinte
que ocupa a posição de especificador. Além disso, é importante ressaltar que o núcleo se
relaciona assimetricamente com o especificador e simetricamente com seu complemento (cf.
esquema X-barra). Vamos discutir um pouco agora essa simetria/assimetria. Consideremos
para tanto outras cenas, como em (53):
(53) a. João quebrou a perna na última semana
        b. João quebrou o vaso na última semana
Em (53), parece claro que o predicado quebrar é um verbo de dois lugares (seleciona
dois argumentos), entretanto, enquanto as restrições impostas para o argumento interno são
fornecidas pelo verbo, as exigências/restrições para o argumento externo necessariamente
precisam ser dadas pelo composto [verbo+argumento interno]. Evidências sintáticas nos
mostram que é o argumento interno que se junta primeiramente ao verbo, formando o
sintagma verbal (SV). Só depois é que o SV vai impor restrições ao outro argumento (o
externo). O papel que o argumento externo vai receber em (53) de ator ou de objeto afetado,
por exemplo, é conseqüência direta do resultado da  composição [quebrar a perna] ou
[quebrar o vaso]. Retomaremos esses exemplos na próxima seção, quando discutiremos as
exigências semânticas dos predicadores.
Encontramos também vários exemplos no português em  que um verbo e o seu
argumento interno formam uma expressão idiomática, excluindo o argumento externo, como     38
em (54a) e (54c), mas parece que não encontramos tais expressões envolvendo um sujeito e
um verbo, sem o complemento, como a agramaticalidade de (54b) e de (54d) evidenciam.
(54)   a. Quebrar a cara
         b. *Ele quebrou
         c. Bater as botas
         d. *Ele bateu
Como podemos observar em (54), expressões idiomáticas podem ser formadas apenas
por sintagmas verbais. Isso nos leva a concluir que o verbo e seu argumento interno, que
figuram como verbo e complemento, devem ter uma relação mais estreita (simétrica) do que o
verbo e seu argumento externo, ou seja, sujeito e verbo.
 Consideremos agora o paradigma em (55).
(55)   a. João quebrou o vaso
        b. O vaso quebrou/O vaso quebrou-se
20
 
        c. O vaso foi quebrado (por João)
        d.?? O João quebrou
 Note-se que o argumento que se mantém nas estruturas em (55) é o interno, o vaso. De
(55a) podemos derivar (55b) e (55c), relacionando o verbo quebrar a seu argumento interno,
mas não formamos (55d). Logo, parece que o argumento interno é indispensável para a
formação das sentenças.
 Consideremos agora verbos de um lugar, como em (56), no que segue. As perguntas
que poderíamos fazer são as seguintes:
• Como explicar, então, os verbos monoargumentais?
• O argumento selecionado por esse predicador é interno ou externo?
                                               
20
 Sugerimos que você leia a dissertação de mestrado  de Marco A. Martins (2005) sobre as construções de
indeterminação com SE para entender melhor as sentenças ilustradas em (55b) com e sem SE.     39
(56) a.  João correu  
        b. João chegou/Chegou João
Muitos autores já mostraram que predicados como correr e predicados como chegar,
apesar de serem considerados verbos de um lugar, apresentam argumentos de natureza
diferente. Enquanto o verbo  correr seleciona um argumento externo, o verbo  chegar
seleciona um argumento interno. Essa distinção está diretamente relacionada aos papéis dos
participantes da cena (de agente e de tema, respectivamente) e aos traços impostos a cada um
dos argumentos, como em (57) e (58):
(57) a.  João correu a corrida de São Silvestre    
       b. *A encomenda correu
(58) a. *João chegou a chegada triunfal
        b. A encomenda chegou
Enquanto (57) permite um objeto cognato, mas não permite um argumento [-
animado]; (58) não permite cognato (pelo menos não irrestritamente) e admite argumento [-
animado]. Essas diferenças podem nos levar a confirmar a existência de duas classes de
verbos monoargumentais: a classe dos verbos intransitivos (já legitimada pela gramática
tradicional) e a classe dos verbos inacusativos
21
 
Esta distinção entre as duas classes de monoargumentais, intransitivos e inacusativos,
pode ser explicada em termos de seleção de argumento: no primeiro caso, o argumento
selecionado é externo e no segundo caso é interno.  Enquanto o primeiro verbo pode ser
potencialmente um transitivo (com a possibilidade de objeto cognato), o segundo não pode
gerar um objeto cognato, pois a posição do argumento interno já está ocupada. Se verbos
prototipicamente intransitivos seguem padrões dos verbos transitivos, com a possibilidade de
projetar um argumento interno, na verdade poderíamos dizer que eles são transitivos
potenciais.
Além do número de argumentos definidos pelos itens lexicais (núcleos), que estamos
chamando aqui de predicados, há tipos de argumentos específicos para se combinar com os
                                               
21
 Vamos trazer para reflexão na unidade 8 outros detalhes sobre os verbos inacusativos.      40
núcleos. Como você pode observar, os exemplos em (57) e (58) ilustram essa exigência
quanto às (im)possibilidades de determinados verbos selecionarem argumentos [+animado]
e/ou [-animado]. No caso do verbo comprar, o predicado exige que um de seus argumentos
(o externo) seja capaz de fazer referência a algum  comprador, como os exemplos em (59),
abaixo, ilustram (retomados de (46)):
(59)  a. João comprou um carro
        b. *A mesa comprou um carro
João, em (59) é marcado por traços semânticos [+animado] que o distingue de mesa [-
animado]. Dizemos, então, que um verbo como comprar exige que seu argumento externo
seja [+ animado].
 Outros tipos de predicados também podem tomar argumentos. São os  nomes, os
adjetivos e as preposições. Retomemos a sentença (49a), agora como (60) para a discussão
do nome como núcleo lexical.
(60)  A compra do carro (pelo João) foi feita na semana passada.
 Em (60), o nome  compra é derivado do verbo  comprar e também estabelece um
evento de compra que impõe restrições a seus argumentos: o objeto da compra (o carro) e o
comprador (o João).  Logo,  o carro e  o João são argumentos selecionados pelo nome
compra, um predicador de dois lugares (à semelhança do verbo comprar).
 Consideremos agora exemplos com adjetivos:
(61) a. Maria foi favorável à compra do carro
       b. Maria está feliz
       c. Maria comprou um belo carro  
 Em (61) há três adjetivos em questão. O adjetivo favorável em (61a) é um predicador
de dois lugares, que impõe restrições sobre os argumentos selecionados por ele, Maria e a
compra (argumentos externo e interno, respectivamente). Em (61b) o adjetivo feliz também
impõe restrições a seu argumento  Maria. Não poderíamos dizer:  A mesa está feliz, por     41
exemplo. Já em (61c) belo não figura como argumento, mas como adjunto, pois faz parte do
sintagma nominal [um belo carro]. O núcleo lexical em (61c) é o verbo comprar. É ele que
impõe condições sobre os argumentos Maria e carro.  
Além de verbos, nomes e adjetivos que figuram como predicados, há também
preposições que não são só elementos relacionais (ou gramaticais), mas núcleos lexicais. Elas
também vão impor restrições a seus argumentos. Vejamos os exemplos em (62):
(62) a. A compra do carro foi feita pelo João contra a vontade de Maria.
       b. João viajou para São Paulo
A preposição contra em (62a) relaciona os argumentos João e a vontade de Maria.
Pode ser considerada um predicado, pois impõe restrições sobre os argumentos por ele
selecionado: um externo (o João) e um interno (a vontade de Maria).
 Para distinguirmos as preposições gramaticais (ou  funcionais) das preposições que
figuram como núcleos lexicais (ou predicados), consideremos as preposições de e para dos
exemplos (62a) e (62b). Elas são de natureza diferente: enquanto a primeira é meramente
relacional, contribui apenas para a combinação entre o nome compra e seu argumento o carro,
em [a compra do carro], a segunda indica direção, impõe restrições ao argumento São Paulo
[para São Paulo], que necessariamente tem de ser um lugar (não poderíamos dizer: *João
viajou para a mesa).
 Em síntese, verbos, nomes, adjetivos e preposições são predicados quando forem
núcleos lexicais, ou seja, quando figurarem como elementos que impõem exigências a seus
argumentos. Essas exigências estão relacionadas ao  número de argumentos selecionado, ao
tipo de argumento (interno ou externo), aos traços  desses argumentos ([+animado] ou [-
animado]) e aos papéis dos participantes da situação descrita. Na próxima unidade, vamos
falar desses papéis.
Unidade 6. Papéis temáticos dos argumentos
 Como já dito, uma das maneiras de entender as sentenças de uma língua consiste em
imaginar que elas representam “pequenas cenas”. Nessas cenas, diferentes entidades
desempenham papéis importantes e necessários. Esses papéis são, em geral, determinados     42
pelo verbo e são mais ou menos fixos. Esses verbos, como já salientamos, são considerados
predicados e são, por sua vez, os responsáveis pela seleção dos argumentos que com eles se
relacionam. Além dos verbos, esses papéis também podem ser determinados por outras
categorias lexicais, como nomes, adjetivos e preposições.  
 Imaginemos, agora, uma situação como a descrita na unidade 3, aqui retomada:
Situação 1: pai e filho passeiam pelo terreiro. De repente, o filho vê uma formiga e pisa em
cima dela. Como ela permanece imóvel, o filho afirma:
─ Pai, a formiga morreu!
Segundos depois, a formiga volta a andar e o filho exclama:
─ Pai, a formiga desmorreu!
 Ao comentarmos essa situação para alguém podemos descrevê-la de várias formas
diferentes dependendo daquilo que queremos evidenciar:
(63) a. Pai e filho passeiam pelo terreiro da casa.
       b. O menino viu uma formiga
       c. O menino pisou em cima da formiga
       d. O menino matou a formiga
       e. A formiga foi morta pelo menino.
       f. A formiga morreu
       g.  A formiga desmorreu
 As sentenças acima descrevem situações
22
 diferentes. As situações são descritas, de
modo geral, pelos verbos passear, ver, ter (existir), pisar, matar e desmorrer. A situação de
passear (em (63a)) requer a presença de um participante, que no caso está representado pelo
pai e pelo filho (alguém passeia), que é o ator que desencadeia o processo de passear. A
situação de ver (em (63b)) envolve dois participantes: aquele que viu (o menino) e aquele que
é visto (a formiga). Podemos dizer que no primeiro caso o constituinte O pai e o filho é um
argumento do predicado  passear e no segundo caso  o menino  e a formiga são dois
argumentos exigidos pelo verbo  ver.  Os exemplos (63d) e (63e) são diferentes formas de
                                               
22
 Situação é um termo geral para descrevermos atividades, eventos e estados.     43
representação de uma pequena cena, cujo verbo é matar e cujos participantes são o menino e
uma formiga.
(64) a. O menino matou a formiga com o pé
            MATAR  (o menino, a formiga)
        b. A formiga foi morta (pelo menino) com o pé.
            SER MORTA  (a formiga, o menino)
Ao descrevermos uma cena, vamos realçar determinada situação e minimizar a
importância de outra, dependendo do papel requerido pelos constituintes na sentença. Em
(64a), por exemplo, realçamos o papel do ator da cena (o agente) e em (64b) realçamos o
papel do objeto afetado, a formiga. Podemos dizer, então, que na primeira sentença o sujeito
desempenha o papel de agente e na segunda, o papel de paciente. Além disso, o sintagma o
menino desempenha o mesmo papel nas duas pequenas cenas,  o mesmo acontece com o
sintagma a formiga.
 Se voltamos à pequena cena descrita em (64), você  pode notar que  o pé é o
instrumento usado para matar a formiga, mesmo não sendo argumento imposto pelo
predicado.
Retomemos agora a sentença em (63b), retomada abaixo em (65). O verbo ver também é um
verbo de dois lugares, mas o papel dos participantes agora não é relativo a ações, mas ao
próprio ato de falar sobre experiências (processo perceptivo).  
(65)   O menino viu uma formiga
          VER   (o menino, uma formiga)
 Neste caso, realçamos o papel do experienciador, foi o menino que [viu a formiga]. E
a formiga continua sendo o objeto, mas nesse caso, um objeto neutro (não afetado), apenas
um tema.
 Consideremos agora as sentenças (63a) e (63f), agora em (66) e (67).
(66) Pai e filho passeiam pelo terreiro de casa
        PASSEAR   (pai e filho)     44
(67) A formiga morreu  (ou a formiga desmorreu)
        MORRER   (a formiga)
Tanto passear como morrer (ou desmorrer) são verbos de um lugar, isto é, requerem
a presença de apenas um argumento. Esse argumento, porém, apresenta papéis diferentes: em
(66) pai e filho é um argumento que desempenha o papel de agente e em (67) a formiga é um
argumento  tema. A expressão  pelo terreiro de casa, em (66) não se caracteriza como
argumento, pois não é exigido pelo verbo (é apenas um adjunto).
 Poderíamos acrescentar à mesma situação descrita alguns detalhes a respeito da cena.
Vejamos:
(68) a. O terreiro da casa estava limpo
        b. A formiguinha estava viva
        c. O menino ficou feliz
23
        d. O menino gosta da formiguinha
 Observemos os adjetivos limpo, viva  e  feliz das pequenas cenas descritas em (68).
Nessas sentenças, a predicação está sendo feita pelos adjetivos, que expressam propriedades
atribuídas a certos constituintes. Em (68) limpo é uma propriedade atribuída ao terreiro, viva
é uma propriedade atribuída à formiguinha e feliz é uma propriedade atribuída ao menino.
Essas sentenças expressam uma situação estativa, mas existe uma grande diferença entre as
sentenças em (68a, b, c), de um lado, e a sentença (68d), de outro. Enquanto (68d) envolve a
participação de dois argumentos impostos pelo predicado verbo  gostar (como em (69a), a
seguir) as primeiras envolvem apenas um participante (o terreiro/a formiguinha/o menino). Os
constituintes que estão funcionando como predicados das primeiras sentenças são os
adjetivos, como ilustra (69b):
(69) a. O menino gosta da formiguinha.
            GOSTAR (o menino, a formiguinha)
        b. O menino ficou feliz.
                                               
23
 Note-se que em (31b) o verbo que está em jogo na estrutura da sentença é de ligação (ou cópula).     45
            FELIZ  (o menino)
Em (69a), o verbo gostar impõe ao argumento interno a formiguinha o papel de tema
(aquele que é gostado) e ao argumento o menino o papel de experienciador (aquele que gosta).
Já em (69b), o adjetivo feliz impõe a menino o papel neutro de tema. Poderíamos, ainda,
acrescentar à situação descrita a seguinte cena:
(70) A destruição da formiga pelo menino foi uma ilusão
        DESTRUIÇÃO (a formiga, o menino)
Dentro da expressão a destruição da formiga pelo menino também existe uma relação
de predicação, estabelecida desta vez pelo nome  destruição. Destruição expressa uma
situação, que envolve dois participantes: a formiga e o menino. Mais uma vez estamos diante
de um predicador de dois lugares. O nome deverbal
24
destruição toma como argumento  a
formiga e o menino, o primeiro um objeto afetado e o segundo um agente.
Há ainda uma outra relação de predicação possível nas sentenças: a relação que a
preposição estabelece com os argumentos impostos por ela. Consideremos, então, a seguinte
cena:
(71) Houve uma guerra do menino contra a formiga
       CONTRA  (o menino, a formiga)
Nesse caso, contra toma dois argumentos, o menino e a formiga. Novamente, nessa
pequena cena o papel de agente vai ser dado ao menino e o papel de objeto afetado (ou alvo),
à formiga.
Consideremos agora (72), à semelhança do exemplo (53), discutido rapidamente na
seção anterior:
(72)  a. O menino quebrou a perna da formiguinha
        b. A formiguinha quebrou a perna
                                               
24
 No exemplo, o nome destruição se deriva do verbo destruir, por isso dizemos que é deverbal.       46
O verbo quebrar em (72a) e (72b) atribui para os sintagmas, a perna da formiguinha e
a perna, o papel de tema. Como já colocamos na unidade 5, o papel do argumento externo,
entretanto, não é determinado pelo verbo sozinho, mas é composicionalmente determinado
pelo complexo verbo-complemento. O papel do argumento externo vai ser determinado só no
momento em que ele se juntar com o sintagma verbal: em (72a) o sintagma O menino é
marcado como o agente por ser o ator da ação expressa pelo complexo [verbo+argumento
interno]. Já o argumento interno A formiguinha (em (72a) e (72b)) é marcado como paciente,
ou alvo, por ser o objeto afetado.
 Em resumo, os exemplos apresentados nesta unidade ilustram predicados (ou núcleos
lexicais), tais como  verbos, nomes, adjetivos e  preposições, que impõem condições
semânticas sobre os elementos que com eles compõem as pequenas cenas. É importante você
notar que as exigências semânticas estão relacionadas aos papéis dos participantes nas
pequenas cenas.  Esses papéis são conhecidos na literatura como papéis temáticos e podem
ser assim sumarizados:
a) agente – papel do ator que tem controle sobre a realização da ação;
b) paciente ou alvo – papel do indivíduo ou objeto afetado pela ação;
c) instrumento – papel do objeto de que o agente se serve para praticar a ação;
d) beneficiário – papel do indivíduo a quem a ação traz proveito ou prejuízo;
e) experienciador – papel do indivíduo que passa pelo  estado psicológico descrito pelo
predicado;
f) locativo – papel do lugar em que o indivíduo ou o objeto estão;
g) tema – papel neutro do indivíduo ou do objeto.
Os papéis temáticos são distintos do sujeito, do objeto e do adjunto, mas há uma
hierarquia que dispõe sobre a possibilidade de os diferentes papéis coincidirem com o sujeito
gramatical. A literatura mostra, por exemplo, que o agente tem mais chances de ser o sujeito
do que o instrumento, que o instrumento tem mais chances do que o alvo, que o alvo tem
mais chances do que o beneficiário e assim por diante. Nessa escala, o tema só seria o sujeito
na falta de todos os outros papéis.       47
Unidade 7. Os verbos monoargumentais
Vamos trazer para discutir nesta unidade questões referentes à transitividade dos
verbos, relacionadas principalmente aos verbos monoargumentais, que são chamados pela
gramática normativa de verbos intransitivos. Nossa discussão novamente se baseia na teoria
Gerativa, mais especificamente no modelo de Princípios e Parâmetros, em sua versão que
ficou conhecida como Regência e Ligação (cf. CHOMSKY, 1986).
Como vocês já viram, ao longo deste livro-texto, nosso léxico mental possui
informação categorial sobre as palavras que contém. Esta informação categorial se refere a
um determinado núcleo lexical e é expressa através dos traços [+/-Nominal, +/-Verbal]. Os
núcleos lexicais (predicados) têm estrutura argumental e selecionam os argumentos que
compõem uma sentença, isto é, selecionam argumentos para preencherem lacunas, impondolhes uma série de restrições. Essas restrições dizem respeito:
• à categoria [-N, +V];
• aos argumentos selecionados que podem ser externos, quando ocupam a
posição de especificador do núcleo, ou internos, quando aparecem na posição
de complemento do núcleo;
• à c-seleção, que se refere à seleção categorial [SN, PP, VP, CP] – sintática; e
• à s-seleção, que se refere à capacidade de selecionar semanticamente os
argumentos.
Para essa nossa discussão, interessa, principalmente, a s-seleção, por fornecer informações
importantes sobre o papel temático dos argumentos.
A partir da configuração dos argumentos selecionados pelo verbo e dos papéis
temáticos que um verbo pode atribuir, o sintagma verbal - VP (do inglês, Verbal Phrase) -
pode tomar diferentes configurações estruturais em termos da Teoria X’:     48
(a) VP     (b) VP          (c) VP  (d) VP        (e) VP  
       |                     /   \       |                 /  \              /  \
      V’                 SN     V’                    V’                 SN     V’                 SN     V’
       |                            |              /   \                           /   \                          /   \
      V
 
                           V                 V     SN                    V   SN                    V    PP
                                                                                                                        /   \
                                                                                                                      V   SN                    
A estrutura arbórea em (a) representa um verbo que não seleciona argumentos, como
chover (Chove); (b) representa um verbo que seleciona apenas um argumento externo, como
trabalhar (Alguém trabalhou); (c) um verbo com um argumento interno, do tipo  chegar
(chegou alguém/algo); (d) um verbo de dois argumentos, um externo e um  interno, como
comprar (Alguém comprou algo) e (e) representa um verbo de três argumentos, um externo e
dois internos, como dar (Alguém deu algo para alguém).
Fazendo uma correspondência dessa representação arbórea com a transitividade do
verbo encontrada nas gramáticas normativas, podemos dizer que (a) representa um verbo
impessoal, (b)/(c) um verbo intransitivo (ou monoargumental, melhor dizendo, como veremos
adiante), (d) um verbo transitivo direto e (e) um verbo transitivo direto e indireto (ou
bitransitivo). Mas como e por que distinguir (b) de (c), se em ambos os casos o verbo
seleciona um argumento apenas? A discussão das diferenças entre (b) e (c) constituem objeto
de discussão desta unidade.
Vejamos, então, em que consiste o argumento para diferenciar a classe dos verbos
exemplificados em (b) e (c).
Você já deve ter percebido que há verbos de um argumento de natureza diferente,
como existir e trabalhar, por exemplo. Enquanto o primeiro é um verbo de estado, isto é, não
um verbo de atividade, o segundo é um verbo de evento, isto é, um verbo de atividade. Mas
será que essa diferença está relacionada apenas às diferenças inerentes ao item lexical existir e
trabalhar? Será que a sintaxe desses dois verbos é a mesma em todas as línguas naturais?
Para tentar responder a essas questões, vamos começar a discutir as  evidências
sintáticas relacionadas aos verbos monoargumentais nas diferentes línguas. Neste primeiro
momento, podemos dizer que (c) é diferente de (b), porque representa um verbo que seleciona     49
apenas argumento interno (e não externo) e é incapaz de atribuir Caso acusativo a esse
argumento, o que faz derivar sua nomenclatura: inacusativo
25
.
Vamos agora tomar algumas reflexões teóricas formuladas por Burzio (1986, apud
COELHO, 2000) para explicar essas diferenças. Foi esse autor que transpôs a hipótese
inacusativa de Perlmutter (1976) para o modelo dos  Princípios e Parâmetros da Teoria
Gerativa.
Afinal, o que é um verbo inacusativo?
Segundo Burzio, diferenças estruturais em uma língua como o italiano permitiam-lhe
postular que construções que só exibem em sua estrutura como posição temática a posição
interna ao núcleo verbal não permitiam que ao sintagma nominal (SN) dessa posição interna
fosse atribuído Caso acusativo. Lembre-se de que uma evidência para se dizer que ao SN é
atribuído Caso acusativo é o fato de esse SN poder se alternar com um clítico, como em: João
comprou um carro/João comprou-o.
Considere agora algumas sentenças do italiano retomadas de Burzio:
(73) a. Giovanni arriva     ‘Giovanni chega’
b. Giovanni telefona     ‘Giovanni telefona’
Aparentemente essas estruturas são iguais: os dois verbos selecionam apenas um argumento.
Quando, porém, os verbos arrivare e telefonare recebem o clítico ne ou um auxiliar aspectual,
diferenças sintáticas se acentuam:
(74) a. Ne arrivano molti    ‘Muitos deles chegaram’
b. *Ne telefonano molti    ‘Muitos deles telefonaram’
(75)  a. Giovanni è arrivato     ‘Giovanni chegou’
b. Giovanni ha telefonato     ‘Giovanni telefonou’
                                               
25
 Você poderá encontrar mais detalhes sobre verbos inacusativos nas reflexões de Mioto et al. (2004), Coelho
(2000) e Coelho et al. (2006).     50
Uma das diferenças que chama a atenção nas estruturas acima é a gramaticalidade, ou
boa formação, de (74a) contra a agramaticalidade de (74b). Verbos como chegar em italiano
aceitam o clítico  ne, ao passo que verbos como  telefonar não aceitam essa espécie de
cliticização. O clítico ne (ne-cl) em italiano também  é possível em outros domínios, tais
como, construções passivas, construções com  se impessoal e construções que alteram
estruturas  transitivas (AVB) em monoargumentais (BV). Em cada um desses domínios, a
cliticização do ne é uma propriedade do SN objeto quantificado, isto é, o clítico ne é usado
somente com objetos, mas não com sujeitos.
Outra diferença é marcada pela seleção do auxiliar  aspectual em (75), e sua exata
correlação com o contraste em (74). Burzio diz que  o sujeito superficial de verbos como
chegar, diferentemente do sujeito de verbos como telefonar, é na verdade um objeto direto na
estrutura profunda (doravante estrutura-D). O autor se refere a verbos monoargumentais que
subcategorizam um objeto direto, como verbos inacusativos, o que significa que, para ele, o
único SN subcategorizado por um verbo dessa natureza é gerado na posição de objeto, logo, à
posição de sujeito não é atribuída nenhuma função temática.
Confrontando estruturas que apresentam o mesmo elemento clítico (si), como (76a) e
(76b), Burzio (1986, apud COELHO, 2000) mostra evidências de posições tematicamente
marcadas e das que perderam marcação temática:
(76) a. Maria si guarda  ‘Maria se olha’
b. Il vetro si rompe  ‘O vidro se quebra’
Em (76a), o autor assume que si é um clítico reflexivo, gerado na posição de objeto, que
forma cadeia com uma categoria vazia em posição de objeto, exatamente onde um clítico não
reflexivo deveria estar, como em (77). É como se o  clítico tivesse se movido para uma
posição à esquerda do verbo, deixando um vestígio (t) na sua posição de base (estrutural):
(77) a . Maria si guarda t
b. Maria lo guarda t
Em ambas as orações, em (77a) e (77b), à posição de objeto é atribuído um papel temático
pelo verbo, e esse papel temático é transmitido ao  clítico, via cadeia, satisfazendo assim o     51
Princípio de Projeção
26
. O clítico é, segundo Burzio (1986, apud COELHO, 2000), a parte
visível do Caso marcado no verbo, o Caso acusativo. A presença de ambos, Caso e papel
temático, em contextos como (77), explica o fato de tais clíticos poderem se alternar com SNs
lexicais, como em (78):
(78) a. Maria  lo  guarda  t                   ‘Maria o olha’
b. Maria guarda Giovanni           ‘Maria olha Giovanni’
O clítico si em (78b) não tem significado reflexivo e nem permite a alternância com
um SN lexical, por isso deve ser considerado um afixo. Se o clítico não tem função temática,
também não pode ter traço de Caso. Na verdade, a presença desse afixo é, segundo o autor,
um reflexo morfológico da perda do papel temático de sujeito, como está evidente em
construções transitivas do tipo (79), em contraste com (80), no que segue:
(79) a.  Il vetro si rompe                       ‘O vidro se quebra’
b. * Il vetro rompe Giovanni       ‘O vidro quebra Giovanni’
(80)  Maria rompe il vetro      ‘Maria quebra o vidro’
A alternância entre SN realizado como sujeito e o clítico si marca a derivação de construções
inacusativas a partir de transitivas, semelhantes aos pares AVB/BV.
Embora em uma língua como o português o teste sintático referente à cliticização do
ne e à seleção diferenciada dos auxiliares aspectuais não esteja disponível, como no italiano,
algumas semelhanças de comportamento entre as duas línguas podem dar indícios de que o
fenômeno da inacusatividade é um fenômeno universal. As construções com o clítico se, as
construções passivas, as construções BV (do contraste entre AVB/BV), as construções
existenciais e as construções com verbos do tipo  aparecer e  chegar são exemplos dessa
possibilidade. Vejamos.
Em relação a estruturas com o elemento clítico, evidências do português mostram que,
com verbos como  quebrar, o clítico mais se parece com um afixo, enquanto em estruturas
com verbos do tipo de  vestir, o clítico reflexivo pode se alternar tanto com um clítico não
                                               
26
 Entende-se por Princípio de Projeção na Teoria Gerativa quando o papel temático é transmitido ao clítico, via
cadeia.     52
reflexivo quanto com um SN lexical, à semelhança do italiano. Observe os exemplos do
português que seguem.
(81) Maria quebrou o copo
(82)  a. O copo se quebrou  t
b. * O copo a quebrou t
c. * O copo quebrou a menina
(83) a. Maria se vestiu  t
 b. Maria a vestiu t
 c. Maria vestiu a menina
Comparando as sentenças (82a) e (81) podemos observar que a alternância do clítico
se com o SN lexical Maria realizado como sujeito (com traços de animacidade) marca, na
verdade, que o clítico é um reflexo morfológico da perda do papel temático do sujeito Maria,
derivando sentenças inacusativas a partir de transitivas (pares AVB/BV). Estudos mostram
que o clítico não reflexivo no português já está desaparecendo, tornando-se bastante possível
(e talvez muito mais recorrente) sentenças como (84a). Entretanto, o clítico reflexivo parece
que não pode estar ausente, como a sentença em (84b) confirma.
(84) a. O copo quebrou  (O copo se quebrou)
b. ??A menina vestiu (A menina se vestiu)
É importante salientar que a sentença em (84b) seria muito melhor, em português, se o
argumento interno estivesse nulo.
Observemos, agora, as sentenças em (85), a seguir.  Como a função temática do
argumento externo  Maria em (85a) realiza o papel temático de agente, parece natural
dizermos que a ausência do clítico em (85d) evidencia a perda do sintagma que tem a função
temática de agente (ou a de experienciador, por exemplo) e que a alternância de estruturas
transitivas (AVB) para monoargumentais (BV) é um processo dessa natureza, como o
paralelismo abaixo confirma:     53
(85) a. Maria quebrou o copo com o martelo
b. * O copo quebrou o martelo
c. O copo se quebrou
d. O copo quebrou
No paradigma em (85), podemos observar que enquanto o verbo de uma construção transitiva
seleciona um argumento externo e um argumento interno necessariamente, o verbo de uma
construção inacusativa seleciona apenas um argumento interno, argumento que reflete a
função temática de tema. Essas restrições selecionais, que permitem estabelecer diferenças
entre os pares AVB/BV, também podem justificar a divisão dos verbos monoargumentais em
duas classes autônomas.
Outro argumento de Burzio (1986; apud COELHO, 2000) a respeito do critério de
inacusatividade, a propriedade de não atribuir Caso acusativo ao SN objeto de um verbo
inacusativo, fundamenta-se nas explicações de Chomsky (1981) em relação às construções
passivas. A morfologia passiva, segundo Chomsky, tem a propriedade de bloquear a
atribuição da função temática externa à posição de especificador de VP. Além de não projetar
uma função temática externa, o verbo passivo, devido a sua morfologia específica, perde a
capacidade de atribuir Caso acusativo. Com base nessas duas propriedades da construção
passiva, e observando que as construções com verbos como  chegar manifestam efeitos
semelhantes aos da passiva, Burzio propõe a seguinte generalização ‘um verbo atribui função
temática externa se e somente se atribui Caso acusativo’, formalizando o que fica sendo
conhecida na literatura como a generalização de Burzio.
A generalização de Burzio explica as diferenças entre os verbos intransitivos e
inacusativos e implica dizer que os verbos intransitivos, assim como os verbos transitivos,
têm a capacidade de atribuir Caso acusativo (mesmo  que seja um objeto cognato),
contrariamente aos verbos inacusativos. Essa proposta de inclusão de uma classe de verbos
inacusativos à tradição gramatical assenta-se, portanto, em uma correlação entre a nãoatribuição de papel temático à posição externa a V

, e a não-atribuição de Caso acusativo ao
SN em posição de objeto. Isso significa que as estruturas inacusativas diferem das estruturas
intransitivas em dois pontos: (1) só exibem como posição temática a posição interna a V

; (2)
ao SN dessa posição interna não é atribuído Caso acusativo (grifos nossos).      54
As evidências sintáticas verificadas em italiano (por Burzio) e em português mostram
que nas línguas naturais existem duas espécies de verbos monoargumentais: os intransitivos e
os inacusativos. Do ponto de vista sintático, os intransitivos são aqueles que selecionam
argumentos externos e os inacusativos são aqueles que selecionam argumentos internos.
Enquanto o primeiro pode ter um objeto cognato, o segundo na grande maioria das vezes não
pode, como os paradigmas em (86) e (87), a seguir, exemplificam.
(86) a. João correu
b.  João correu a corrida de São Silvestre (ou João correu a São Silvestre)
(87) a. João chegou
b* João chegou uma chegada
Além das evidências sintáticas mostradas acima, há  também evidências semânticas
relacionadas aos diferentes papéis temáticos atribuídos aos argumentos externos e internos,
que nos permitem distinguir os monoargumentais em classes distintas. Vejamos, então,
algumas reflexões a seguir.
 Retomamos, primeiramente, a discussão do papel temático apresentada na unidade 7.
Os predicados (ou núcleos lexicais), tais como verbos, nomes, adjetivos e preposições, são
elementos das sentenças que impõem condições semânticas sobre os constituintes que com
eles compõem as pequenas cenas. As exigências semânticas estão relacionadas aos papéis dos
participantes nas pequenas cenas. Vejamos, então, os principais papéis temáticos que são
exigidos pelos verbos monoargumentais: intransitivos e inacusativos. São papéis de: a) agente
– papel do ator que tem controle sobre a realização da ação e de b) tema – papel neutro do
indivíduo ou do objeto.
 As propriedades semânticas de agente e de tema indicam as propriedades daquele que
é o desencadeador da ação (o agente) e daquele que é o objeto afetado (o tema), relacionadas
em geral com os papéis temáticos dos verbos intransitivos e inacusativos, respectivamente.
Dentro desta distribuição, espera-se encontrar para o argumento externo de um verbo
intransitivo a propriedade de desencadeador e para o argumento de um verbo inacusativo a
propriedade de ser afetado. Tomemos agora os exemplos em (88), a seguir, para confirmar ou
não essa distribuição.     55
         
(88) a. João correu a corrida de São Silvestre no ano passado
(João – desencadeador da ação de correr)
(a corrida de São Silvestre – objeto afetado)
b. João comprou um carro no ano passado
(João – desencadeador da ação de comprar)
(um carro – objeto afetado)
 
Em (88b) há duas propriedades em jogo: João desencadeia o processo de comprar e um carro
é o objeto afetado pela compra feita, pois se é verdade que João comprou um carro no ano
passado, é verdade também que João foi o desencadeador da compra e que um carro foi o
objeto comprado por João. Igualmente, em (88a),  João  e  a maratona correspondem aos
argumentos João e um carro. João tem a propriedade de desencadear o processo de corrida,
pois se é verdade que João correu no ano passado é verdade que João foi o desencadeador
desse processo, o agente. Além disso, a corrida de São Silvestre (objeto possível – cognato)
foi o objeto afetado por João.
 Vejamos agora (89):
(89) a.  A encomenda chegou no ano passado  
(A encomenda – objeto afetado)
b. João chegou no ano passado
(João – objeto afetado)  
Em (89a), a encomenda é o objeto afetado, pois se é verdade que A encomenda chegou
no ano passado é verdade também que A encomenda mudou de um estado A para outro B, o
de não estar mais em algum lugar e o de chegar em um outro lugar. O mesmo poderíamos
dizer para (89b), João é o objeto afetado, pois se é verdade que João chegou no ano passado
é verdade também que ele mudou de um estado A para outro B, o de não estar mais em algum
lugar e o de chegar em um outro lugar. O objeto afetado é conhecido na literatura como tema.
Compare agora (89) com (90), no que segue.     56
(90) a. O copo se quebrou
(O copo – objeto afetado)
b. O copo quebrou
(O copo – objeto afetado)
Em (90), o sintagma o copo também tem a propriedade de mudar de um estado A para
um estado B (estava inteiro e se quebrou), é portanto, o objeto afetado, ou seja, o tema. O
mesmo papel de tema é atribuído ao sintagma o copo da sentença transitiva em (91). Vejamos
as semelhanças ilustradas em (91)a e (91)b.
(91) a. João quebrou o copo (com o martelo) na última semana
b. João quebrou o copo (com o empurrão que levou) na última semana
Ao sintagma o copo, tanto em (91a) quanto em (91b), portanto, é atribuído o papel de tema,
por ser o objeto que foi afetado pela mudança de um estado A para um estado B. Notem vocês
que o sintagma que exerce a função de objeto direto de um verbo transitivo como quebrar é
muito parecido com o sintagma que exerce a função de sujeito de um verbo inacusativo como
chegar: ambos são argumentos internos.
Resumindo as questões discutidas nesta Unidade, podemos dizer que existem
argumentos para supor dois tipos de verbos monoargumentais nas línguas naturais: os
intransitivos e os inacusativos e que há diferenças sintáticas e semânticas atribuídas a cada
um deles. Sistematizamos a seguir essas propriedades:
1) verbos intransitivos:
• exigência sintática: selecionam argumento externo e exibem uma posição estrutural
temática, a de sujeito, mas potencialmente podem exibir uma posição temática de
objeto (se for um objeto cognato);
• exigência semântica: o argumento externo é marcado tematicamente com a
propriedade de ser o desencadeador da ação manifestada pelo verbo (o agente).       57
2) verbos inacusativos:
• exigência sintática: só exibem uma posição estrutural temática, a de objeto, e o
objeto direto não recebe caso acusativo (ou seja, não admite se cliticizar);
• exigência semântica: argumento interno é marcado tematicamente com a propriedade
de objeto afetado (o tema).
LEITURAS COMPLEMENTARES
COELHO, Izete Lehmkhul. A ordem V NP em construções monoargumentais: uma restrição
sintático-semântica. Letras de Hoje. Porto Alegre. V. 35, n. 1, p. 47-73. 2000.
COELHO, Izete Lehmhuhl; MONGUILHOTT, Isabel; MARTINS, Marco Antonio; COSTA,
Sueli & MAFRA, Gésyka. O estatuto das construções monoargumentais no PB: por trás das
frequências. In: Paulino Vandresem. (Org.).  Variação, Mudança e Contato Lingüístico no
Português da Região Sul. Pelotas: EDUCAT, 2006, p. 205-225.
MIOTO, Carlos; FIGUEIREDO SILVA, Maria Cristina; LOPES, Ruth.  Novo Manual de
Sintaxe. Florianópolis: Insular, 2004 (capítulos 2, 3 e 4).      58
Temática IV - DISTRIBUIÇÃO DOS CONSTITUINTES NA SENTENÇA
 Sabemos que as línguas naturais colocam à disposição dos falantes várias
possibilidades de ordenação dos constituintes para  que as pessoas possam expressar os
eventos observados no mundo
27
. A ordem dos constituintes (e/ou das palavras) está
relacionada à estrutura da sentença de uma língua (i.e. à estrutura da pequena cena). Um fato
observável nas línguas particulares é que há freqüentemente variação na ordem de palavras
28
.
Mesmo havendo variação, cada língua elege uma ordem como a dominante. Na língua
portuguesa e em LIBRAS, por exemplo, a ordenação básica de seus constituintes parece
seguir a mesma hierarquia: SVO (sujeito-verbo-objeto), na grande maioria dos casos.
Consideremos, então, na discussão apresentada na Unidade 8, o caso do português (do
Brasil). Como já vimos no decorrer deste livro-texto, o estudo da sintaxe está relacionado à
combinação entre palavras para formar sentenças. Essa combinação entre as palavras de uma
língua não é aleatória, pelo contrário, segue algumas regras. Unidades menores formam
unidades maiores, hierarquicamente organizadas, formando os sintagmas. A união dos
sintagmas forma as sentenças.
Na unidade 8, subseqüente, vamos tratar da ordem dos constituintes nas sentenças e de
alguns efeitos discursivos do movimento dos constituintes.
Unidade 8. Ordem dos constituintes
 Cada falante, diante de um mesmo evento, pode expressar esse evento de maneiras
diferentes. Os vários constituintes de uma sentença podem ser colocados em diferentes
posições na sentença para expressar diferentes efeitos discursivos. Em várias posições, sim,
mas não em todas ou em qualquer posição.
 Consideremos, primeiro, a ordem linear dos constituintes. Uma sentença é bem
formada no português quando a estrutura hierárquica de seus constituintes obedece a algumas
restrições.  Vejamos as seguintes sentenças em (92):
                                               
27
 Como vocês já viram, na unidade 1, por constituinte entendemos certos grupos de unidades que fazem parte de
seqüências maiores, mas que mostram certo grau de coesão entre eles.
28
 Sobre a variação da ordem sujeito-verbo/verbo-sujeito no português do Brasil veja Coelho (2000).      59
(92) a.  A Maria comprou um bolo de chocolate para a festa de sábado
 b.? Comprou a Maria um bolo de chocolate para a festa de sábado
 c. ? A Maria um bolo de chocolate comprou para a festa de sábado
 d.  Para a festa de sábado a Maria comprou um bolo de chocolate
 Os exemplos em (92) apresentam alguns constituintes que se organizam na sentença
de forma variável. São eles, o sujeito, o verbo, o objeto direto e um adjunto adverbial. Sem
pôr nenhum dos constituintes que se relacionam com  o verbo  comprar (Maria, o bolo de
chocolate) em evidência, podemos dizer que apenas (92a) e (92e) são construções boas no
português do Brasil
29
. Em (92a), o sujeito (a Maria) antecede o verbo (comer) e o verbo
antecede o objeto (o bolo de chocolate). Essa parece ser de fato a construção transitiva
canônica do português, na ordem SVO. No caso dos exemplos (92b) e (92c) não são
sentenças bem aceitas no português (ou pelo menos não muito comuns). Já a sentença (92e) é
boa, pois o elemento deslocado é um termo adjunto,  e não argumental. A liberdade de
ordenação dos constituintes adjuntos permite as seguintes variações, exemplificadas em (93),
a seguir.
(93)  a. A Maria comprou um bolo de chocolate para a festa de sábado
b. Para a festa de sábado a Maria comprou um bolo de chocolate
c. A Maria para a festa de sábado comprou um bolo de chocolate
d. A Maria comprou  para a festa de sábado um bolo de chocolate
 Quando o constituinte é argumento do predicado, no entanto, as possibilidades de
ordenação ficam bastante restritas. Retomemos primeiramente a questão do movimento de
parte dos constituintes, como em (94).
   
(94) a. A Maria comprou um bolo de chocolate para a festa de sábado
 b. Um bolo de chocolate a Maria comprou para a festa de sábado
 c. * Um bolo a Maria de chocolate comprou para a festa de sábado
 d. * A Maria comprou um bolo para a festa de chocolate de sábado
 e. * A Maria comprou um bolo para a festa de sábado de chocolate
                                               
29
 Para um estudo diacrônico da ordenação de constituintes no português do Brasil, sugerimos a leitura do artigo
de Coelho, Monguilhott e Martins (2008).     60
 Enquanto a ordem SVO é irrestrita, a ordem OSV só é boa porque o constituinte que
figura como objeto está no topo da sentença (94b).  Mas (94c), (94d) e (94e) não são
sentenças boas no português (do Brasil), pois não é possível deslocarem-se partes de
constituintes nem seqüências que não formem um constituinte.
 Considere, então, as sentenças em (95).
(95) a. ?Um bolo de chocolate comprou a Maria para a festa de sábado
 b. ?A Maria um bolo de chocolate comprou para a festa de sábado
 Note você que mesmo envolvendo movimento de todo o constituinte [um bolo de
chocolate], (94a) e (94b) são sentenças bem melhores do que (95a) e (95b) no português. O
que explicaria a possibilidade de pospor ou de antepor o sujeito e o objeto em (95)?
 Baseados na teoria de Princípios e Parâmetros, podemos dizer que há línguas de
núcleo inicial (verbo-complemento) e línguas de núcleo final (complemento-verbo). O
português figura como uma língua de núcleo inicial, ou seja, prefere a ordem verbocomplemento, como os exemplos acima evidenciam. Essas duas opções compõem o que é
denominado de  parâmetro de direcionalidade, segundo o qual algumas línguas humanas
tomam a opção verbo-complemento como o inglês, por  exemplo, e outras a opção
complemento-verbo, como japonês.
 Sabe-se que a tarefa da criança na época de aquisição da linguagem será a de marcar
uma dessas opções baseando-se nas evidências empíricas a que está exposta. Como nas
evidências do português o complemento vem preferencialmente depois do verbo, é natural
que a criança, que tem como língua natural o português, marque o parâmetro de ordem verbocomplemento como o parâmetro de sua língua.
 Considere agora outros exemplos:
(96) a. O bolo de chocolate chegou
 b. Chegou o bolo de chocolate
 O que explicaria a possibilidade de  pospor ou de  antepor o sujeito em (96), na
gramática do português?     61
  Como já discutimos na unidade anterior, verbos como  chegar selecionam um
argumento interno (e não um argumento externo). Como esse é o único argumento
selecionado, pode aparecer no português na posição de complemento (posição de base) ou na
posição do sujeito, já que esse tipo de verbo não vai selecionar argumento externo. Lembre-se
de que, de acordo com a hierarquia do sujeito, um argumento tema pode vir a ser o sujeito da
sentença na falta de qualquer um outro argumento que receba papel temático, quando, por
exemplo, o verbo apenas selecionar argumentos internos (e não externos).
 Há restrições semânticas de combinação de verbos e possíveis sintagmas com
determinados papéis temáticos e Caso
30
. Caso nominativo está diretamente relacionado, no
português, à marcação da concordância sujeito-verbo e caso acusativo à não-marcação da
concordância, como já colocamos na unidade 5.
 Na teoria gerativa, costumamos dizer que as (im)possibilidades de combinação de
determinados constituintes e as (im)possibilidades de movimentos desses constituintes podem
levar a ordenações diferentes de uma sentença, produzindo o que se conhece como variação
intra-lingüística (dentro da própria língua) ou variação inter-lingüística (entre mais de uma
língua, como diferenças entre o português e línguas de sinais brasileira, por exemplo).
 É importante notar que a ordem verbo–sujeito para sentenças como (95) soa pouco
natural no português do Brasil
31
, enquanto a mesma ordem é muito boa para sentenças como
(96). No primeiro caso, temos um verbo de dois lugares (ou transitivo) e no segundo caso, um
verbo de um lugar (ou inacusativo). Parece que o português prefere a ordem posposta para o
sujeito quando a construção é inacusativa. Há restrições, portanto, de movimento dos
constituintes atrelado ao tipo de verbo (ou item lexical).
 Além disso, as evidências em (97) mostram que o português do Brasil exige marcação
de concordância entre sujeito-verbo quando o sujeito estiver anteposto ao verbo, e admite não
concordância quando ele estiver posposto.  
(97) a. A Maria e o João compraram um bolo de chocolate para a festa de sábado
 b.?? A Maria e o João comprou dois bolos de chocolate para a festa de sábado
 c. O bolo de chocolate e o sorvete chegaram
                                               
30
 Além do papel temático, a atribuição de Caso nominativo também contribui para a marcação da configuração
da sentença.  
31
 Estamos considerando aqui Português do Brasil, pois estudos mostram que no Português de Portugal há outras
possibilidades de variação da ordem do sujeito.      62
d. ?? O bolo de chocolate e o sorvete chegou
32
 e.  Chegaram/Chegou
33
o bolo de chocolate e o sorvete
 No que se refere à ordem dos constituintes que fazem parte do sintagma verbal,
quando o verbo é bitransitivo, ou seja, quando é um verbo de três lugares, a ordem dos
complementos é geralmente Verbo-Objeto Direto-Objeto Indireto (VODOI), com o OD
ocupando a posição à direita do verbo e o OI ocupando a posição à direita do OD. Mas,
diferentemente do que acontece com a ordem dos constituintes que figuram nas sentenças
transitivas como sujeito, a ordem VOIOD caracteriza uma sentença boa no português, como
os exemplos em (98) ilustram:
(98) a. Maria deu o bolo de chocolate para João
 b. Maria deu para o João o bolo de chocolate
 Quando o argumento está representado por um clítico, o clítico vai necessariamente
acompanhar o verbo, como em (99a), por isso (99b) não é uma sentença boa. Agora, quando o
clítico é trocado por um pronome tônico, a variação da ordem VODOI/VOIOD é possível.
(99) a. Maria deu-lhe o bolo de chocolate
      b. * Maria deu o bolo de chocolate lhe
      c. Maria deu o bolo de chocolate para ele
       d. Maria deu para ele o bolo de chocolate
 Há ainda uma outra possibilidade de movimento de constituintes nas línguas, atrelado
a efeitos discursivos diversos. Quando deslocamos um constituinte como o bolo de chocolate
ou para a festa de sábado para o início da sentença, estamos colocando esse constituinte em
uma posição de tópico na sentença (isto é, no topo da sentença), como os exemplos em (100),
abaixo, ilustram.
                                               
32
 Sabemos que pessoas não escolarizadas muitas vezes não marcam a concordância entre sujeito-verbo. Como
não estamos discutindo variação estilística, o critério de gramaticalidade usado por nós leva em consideração a
concordância canônica entre sujeito-verbo.
33
 Sugerimos agora que você leia a dissertação de Mestrado de Monguilhott (2001) a respeito da variação da
concordância verbal.      63
(100) a. A Maria, (ela) comprou o bolo de chocolate para a festa do sábado
      b. O bolo de chocolate, a Maria comprou (ele) para a festa do sábado
      c. Para a festa do sábado, a Maria comprou o bolo de chocolate
 Esse tipo de deslocamento é chamado de topicalização. Em (100b), o objeto direto é
que foi topicalizado e, em (100c), foi o advérbio de tempo. Já em (100a), notamos uma
espécie de redobramento do sujeito (ou sujeito duplo). Nesse caso, A Maria é considerada o
tópico da sentença e ela o sujeito gramatical. Esse último fenômeno tem sido cada vez mais
freqüente no português do Brasil, principalmente em língua oral.
 De maneira geral, o tópico é um constituinte já conhecido no discurso (ou inferível). É
sobre ele que vai se fazer uma declaração:
• sobre a Maria, ela comprou o bolo...
• sobre o bolo, a Maria comprou ele para a festa...
• para a festa, a Maria comprou o bolo...
 Podemos, ainda, deslocar constituintes na sentença para realizar uma operação de
focalização, como ilustram os exemplos em (101).
(101) a. A MARIA comprou o bolo de chocolate para a festa do sábado (e não a Joana)
      b. O BOLO DE CHOCOLATE a Maria comprou para a festa do sábado (e não o
         bolo de laranja)
       c. PARA A FESTA DO SÁBADO a Maria comprou o bolo de chocolate (e não para
         a festa do domingo)
 Neste caso, os constituintes em destaque são informações novas, que não podem ser
retomadas por um pronome. Em (101a), o sujeito é focalizado, em (101b) o objeto e em
(101c) o adjunto. Em todos os três casos, o foco é contrastivo. Esse foco pode ser também     64
evidenciado em português através da operação de clivagem
34
. Vejamos agora os exemplos em
(102):
(102) a. Foi A MARIA que comprou o bolo de chocolate para a festa do sábado
         b. Foi O BOLO DE CHOCOLATE que a Maria comprou para a festa do sábado
        c. Foi PARA A FESTA DO SÁBADO que a Maria comprou o bolo de chocolate
 Na operação de focalização com o uso de “é que” nas orações em (102), os
constituintes se deslocam para uma posição mais alta e ficam “sanduichados”, isto é ficam
entre o  verbo ser  e o conector  que (é que), criando o efeito discursivo conhecido como
focalização contrastiva. O verbo ser (foi) e o conectivo (que), considerados na literatura
como elementos de clivagem, são usados para criarem efeitos discursivos de focalização.
Vejamos.
• em (102a), podemos dizer que o foco recai no sujeito, foi a Maria e não outra pessoa
quem comprou o bolo;
• em (102b), o foco recai no constituinte objeto direto, foi o bolo de chocolate e não o
de laranja;
• em (102c), o foco recai no constituinte a festa de sábado e não a festa de domingo;
foco no adjunto.
 Em síntese, como fecho dessa unidade 8, alguns fenômenos na língua, que constituem
evidência sintática para o fato de que a sentença é uma estrutura hierárquica de constituintes,
são relacionados às possibilidades de distribuição dos constituintes em diversas posições na
sentença. Há nas línguas humanas restrições sintáticas relacionadas a papel temático e a caso
(em especial ao caso nominativo, por questões de marcação de concordância entre o verbo e
sujeito). Tais restrições, de certa forma, impõem uma hierarquia dos constituintes que figuram
como sujeito e como complemento nas sentenças. Além das sentenças básicas, o movimento
de constituintes a posições deslocadas como a posição inicial geralmente acontece para criar
                                               
34
 Entende-se por operação de clivagem a possibilidade de se fazer uma focalização através do uso do expletivo é
que.     65
efeitos discursivos diversos. Ressaltam-se aqui as  operações de topicalização e as de
focalização.  
LEITURAS COMPLEMENTARES
BERLINCK, Rosane de Andrade; AUGUSTO, Marina R. A.; SCHER, Ana Paula. Sintaxe.
In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (orgs.). São Paulo: Cortez, 2001.
NEGRÃO, Esmeralda; SCHER, Ana Paula; VIOTTI, Evani de Carvalho. Sintaxe: explorando
a estrutura da sentença. In: FIORIN, José Luiz (org.) Introdução à Lingüística II: Princípios
de análise. São Paulo: Editora Contexto, 2003.
QUADROS, Ronice Muller; KARNOPP, Lodenir Becker.  Língua de sinais brasileira:
estudos lingüísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004.      66
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esperamos que a leitura deste livro-texto tenha auxiliado você na construção de um
novo caminho no que se refere ao estudo da sintaxe. De um modo geral, o objetivo do curso
Sintaxe foi o de discutir alguns fenômenos sintáticos das línguas naturais à luz da teoria de
Princípios e Parâmetros. A teoria de Princípios e Parâmetros passou (e ainda passa na
atualidade, com os desdobramentos do Programa Minimalista) por diferentes estágios e
modelos na tentativa de descrever e explicar o conhecimento lingüístico que um falante tem
quando adquire e/ou aprende uma língua.
 Em síntese, e com jeito de conclusão, vimos que a capacidade de adquirir língua é uma
dotação genética da espécie humana, ou, por outros termos, todo ser humano, em condições
fisiológicas normais, nascido numa grande metrópole ou numa tribo indígena, quando exposto
a dados lingüísticos é competente para adquirir língua. A Gramática Universal (GU) é uma
teoria sobre o estágio inicial da Faculdade da Linguagem (FL) e é constituída de Princípios
(universais para todas as línguas) e Parâmetros (variáveis entre as línguas). O estudo da
sintaxe sob essa perspectiva é o estudo das propriedades estruturais que definem as
gramáticas das línguas particulares, tendo por base os Princípios e Parâmetros da GU. Essa foi
a temática das Unidades 1 e 2.
 Nas demais Unidades deste livro-texto, nos voltamos ao “funcionamento” da sintaxe,
propriamente dito.  Vimos que na derivação de objetos na sintaxe, ou seja, na formação de
constituintes mais elaborados a partir de átomos lingüísticos, as gramáticas das línguas
particulares dispõem de núcleos lexicais (podem ser classificados em verbais [+V; -N],
nominais [-V; +N], adjetivais [+V; +N] e preposicionais [-V; -N]) e núcleos funcionais – ou
gramaticais. Esses núcleos são denominados predicados e selecionam sintática e
semanticamente seus argumentos, o que implica dizer que os predicados impõem exigências
sintáticas e semânticas aos seus argumentos. Abordamos, na Unidade 8, o estudo da
distribuição dos constituintes na sentença e vimos  que as restrições sintático-semânticas
determinam uma hierarquia entre esses constituintes que podem aparecer na posição de
sujeito e de complemento.
Como dito na introdução, a teoria de Princípios e Parâmetros, tal como
introdutoriamente apresentada neste livro-texto, é uma possibilidade, talvez nova para muitos
deste curso de  Sintaxe, para o estudo de fenômenos sintáticos das línguas humanas. Essa      67
teoria tem sido, desde a década de 80, um campo fértil de debates e descobertas relacionados
ao conhecimento lingüístico que um indivíduo tem quando sabe (fala) uma língua particular.     68
BIBLIOGRAFIA GERAL
BERLINCK, Rosane de Andrade; AUGUSTO, Marina R. A.; SCHER, Ana Paula. Sintaxe.
In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (orgs.). São Paulo: Cortez, 2001.
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Noam Chomsky. The Minimalist Program. Massachusetts, MIT PRESS, 1995, pp. 13–127.
CHOMSKY, Noan.  Lectures on government and binding. Dordrecht: Foris, 1981.
CHOMSKY, Noan. Knowledge of language: Its nature, origin and use. New York: Praeger,
1986.
COELHO, Izete Lehmkhul. A ordem V NP em construções monoargumentais: uma restrição
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COELHO, Izete Lehmkuhl; MONGUILHOTT, Isabel & MARTINS, Marco Antonio. Estudo
diacrônico da inversão sujeito-verbo no PB: fenômenos correlacionados. In. Cláudia
Roncarati & Juçara Abraçado (orgs.)  Português Brasileiro II – contato lingüístico,
heterogeneidade e história. Niterói: EdUFF, 2008, pp. 137-136.
COELHO, Izete Lehmhuhl; MONGUILHOTT, Isabel; MARTINS, Marco Antonio; COSTA,
Sueli & MAFRA, Gésyka. O estatuto das construções monoargumentais no PB: por trás das
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Português da Região Sul. Pelotas: EDUCAT, 2006, p. 205-225.
LISBOA DE LIZ, Lucilene.  Triargumentais: uma abordagem minimalista. (Projeto de
doutorado) UFSC, 2005.
MARTINS, Marco Antonio. Entre estrutura, variação e mudança: uma análise sincrônica
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Dissertação de mestrado. 2005.
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MATTOSO CÂMARA JR. Joaquim.  Estrutura da Língua Portuguesa. 26ª Edição.
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MIOTO, Carlos; FIGUEIREDO SILVA, Maria Cristina; LOPES, Ruth.  Novo Manual de
Sintaxe. Florianópolis: Insular, 2004.     69
MONGUILHOTT, Isabel de Oliveira e Silva. Variação na concordância verbal
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NEGRÃO, Esmeralda; SCHER, Ana Paula; VIOTTI, Evani  de Carvalho. A competência
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Introdução à Lingüística II: Princípios de análise. São Paulo: Editora Contexto, 2003.
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_______. Gramática descritiva do Português. São Paulo: Ática, 1995.
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